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A vida depois de… lutar pelo reconhecimento da identidade de gênero

Moradora de Brasília, Alícia foi a primeira pessoa transexual a ter uma cadeira em um conselho superior de uma universidade do Brasil e amanhã (29/1) será a primeira trans a se formar na Universidade Estadual de Ponta Grossa

atualizado

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Leonardo Arruda/Esp. Metrópoles
A vida depois de… Transsexualidade – Sudoeste – DF 18/01/2016
1 de 1 A vida depois de… Transsexualidade – Sudoeste – DF 18/01/2016 - Foto: Leonardo Arruda/Esp. Metrópoles

Quando ainda era muito criança, Alícia Krüger, 22 anos, descobriu que o mundo diferenciava as pessoas em dois gêneros: feminino e masculino. Esse estalo veio ao perceber que o sexo que lhe foi atribuído ao nascimento, não correspondia a sua identidade de gênero.

“Transexualidade é um título que me deram, eu sou mulher. Eu sou Alícia, a construção do que eu fui a vida inteira. Agora, o que as pessoas julgam ou não ser mulher vai da visão de cada um”, explica.

Alícia tinha um registro que dizia que era do sexo masculino e com um nome masculino. Depois de três anos de muita luta nos tribunais, hoje, para a justiça brasileira, ela é oficialmente Alícia Krüger, sexo feminino.

Sudoeste (DF), 18/01/16 - A vida depois de se assumir transsexual, Alícia Krüger.

Nascida e criada em Ponta Grossa (PR), ela diz que, mesmo sabendo que polarizava para o lado feminino, gostava muito de jogar bola, brincar de carrinho e fazer “coisas de menino”. Alícia também brincava de boneca e casinha, mas no geral fazia muito mais as coisas que “meninos faziam”.

“Sempre fui mais delicada, acabei tendo mais amigas meninas, mas acho que isso é relativo. Não tive um marco, minha infância foi normal. Só fui descobrir a palavra transexual muito tempo depois”, relembra.

Uma vida de verdade 
Junto com o gênero, vêm os estereótipos. Por exemplo, homens têm barba, mulheres têm cabelo comprido. E foi aí que Alícia, tendo cada vez mais certeza de que era mulher, quis mudar e corresponder fisicamente aos estereótipos da sociedade. Ao mesmo tempo, ela tinha muito medo da reação da família, que sempre se mostrou muito conservadora, principalmente a paterna.

O estopim veio quando a mãe faleceu há quatro anos. Alícia resolveu que não precisava mais fingir ser alguém que não era. Independentemente da consequência que viesse, não poderia mais ficar fugindo, precisava viver.

Eu tive a noção de que a pessoa mais eterna, mais importante para mim, se foi. Então, eu não tinha mais nada a perder. Era hora de parar de encenar uma peça e viver uma vida de verdade. 

Alícia Krüger
Foto: Arquivo Pessoal
A foto escolhida por Alícia para ser mostrada na formatura

Foi nesse momento que ela decidiu expressar socialmente a certeza que tinha de ser mulher. Então com 17 anos, querendo ter seios e cabelo comprido, começou uma hormonioterapia de forma muito rústica, se automedicando com anticoncepcionais. Ela explica que a maioria das pessoas trans começa a tomar hormônios por conta própria, pois a saúde pública não atende a demanda da maneira correta, e que teve sorte por começar o tratamento relativamente jovem.

Na época, por cursar farmácia na faculdade, Alícia tinha o conhecimento para fazer a reposição hormonal sozinha. Depois, conseguiu acompanhamento médico e passou a tomar estrogênio e antiandrogênico. Ela terá de tomar hormônios para o resto da vida, mesmo se fizer a cirurgia de redesignação sexual.

A cirurgia já foi muito importante para a farmacêutica. Mas desconstruiu esse desejo após entrar na militância trans e fazer pesquisas na faculdade. “Assim que descobri que tinha como, eu queria a minha vagina, porque aquilo era ser mulher pra mim. Mas uma pessoa não é um genital. Eu ainda penso em fazer, mas vou sentar e analisar bem, porque querendo ou não é uma cirurgia muito grande e uma mudança enorme no meu corpo”, explica.

Para Alícia, a cirurgia não muda o fato de ser ou não mulher. Ela cita ainda Simone de Beauvoir para explicar o raciocínio: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”.

A aceitação da família 
Antes de a mãe falecer, Alícia já morava com o pai. De ascendência alemã, católico e heterossexual, ele sempre se mostrou um homem extremamente preconceituoso. Ela cresceu ouvindo comentários negativos relacionados aos LGBTs e, sabendo quem era, se assustava muito e sentia receio de se abrir.

Foto: Leonardo Arruda/ Especial para Metrópoles
Alícia Krüger mostra uma foto dos amores da sua vida: o pai e a irmã mais nova

Mas, para sua surpresa, o pai aceitou a notícia muito bem, se emocionou na frente da filha e declarou todo seu amor por ela. Hoje em dia os dois têm uma relação maravilhosa e são melhores amigos. A mesma reação veio por parte da irmã mais nova, Fernanda, 15 anos. “Ela é como uma filha, porque a vi crescer e a amo muito, como se fosse um pedaço de mim”, diz com um largo sorriso.

Já com o irmão mais velho não mantém contato, porque ele não soube aceitar a irmã como ela realmente é. “Eu não o julgo, não o odeio, porque sei que isso é fruto de uma criação que ele recebeu. Claro que não justifica. Explicar é diferente de justificar, não torna justo que ele seja como é, mas talvez explique. Não sinto nada de ruim, nem nada de bom. Melhor assim, cada um na sua”, afirma sem se aprofundar.

Atualmente solteira, Alícia foi noiva aos 19 e quase casou. O relacionamento não deu certo, mas ela garante que guarda as lembranças com carinho e até consegue ser amiga de alguns exs.

Universitária, militante e miss
Muito atuante na causa trans, carrega a questão como bandeira política.“Gosto muito de me declarar uma mulher trans, o que não diminui ou exclui o fato de que eu sou uma mulher. A questão trans é a bandeira que eu levanto para travar todas as minhas lutas diárias. Sempre vou ser mulher, mas também vou ser trans. Porque eu quero, é a bandeira que eu carrego”, diz orgulhosa. 

Acostumada a ouvir que não parece trans, ela explica que isso não é um elogio. “Sempre tem aquela coisa de parecer ou não. As pessoas acham que é um elogio dizer que você não parece algo que você é. Mas, enfim, eu poderia simplesmente não parecer trans, trocar meus documentos, fazer uma possível cirurgia e ficar quietinha na minha. Mas não”.

Foto do convite de formatura do curso de Farmácia
Foto do convite de formatura do curso de Farmácia

Alícia diz que, enquanto muitas irmãs travestis e transsexuais estão nas esquinas se prostituindo, algo que também é legítimo, ela fez uma boa faculdade, tem uma família bacana e uma situação privilegiada no meio da exclusão. Por isso, se sentiu na obrigação fazer alguma coisa pelas trans e travestis que não tiveram a mesma oportunidade por puro preconceito da família e da sociedade.

Por falar em preconceito, a farmacêutica alega que na faculdade foi lugar em que mais sofreu com julgamentos. Mas foi lá também que se tornou a primeira mulher transexual a ter uma cadeira em um conselho superior de uma universidade do Brasil. Dentro do mundo acadêmico, ela viu que precisava fazer alguma coisa por outras pessoas trans.

“Eu fiz o vestibular quando eu ainda estava ‘menino’ para a sociedade. Então, é muito fácil um ‘menino’ sentar, ser chamado pelo nome de menino e fazer a prova. Agora quantos homens trans e mulheres trans já têm sua identidade de gênero perpetuada no seu corpo, na sua vida, e irão ser chamados por nomes diferentes daqueles que os identificam? Isso gera um constrangimento na hora da prova e eles não vão passar. Lutei para o nome social começar a ser usado na hora do vestibular”, conta.

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Fã da banda Coldplay, Alícia tatuou no braço a frase da música ‘Every Teardrop is a Waterfall”: “Eu prefiro ser uma vírgula a ser um ponto final”

Alícia formulou um processo para que o nome social fosse respeitado já nas provas. Assim, a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) foi a primeira universidade brasileira a permitir o uso do nome social no vestibular, em concursos e na admissão de professores e funcionários. Ela tinha razão. Faltava oportunidade para as pessoas. Depois da resolução, deixou de ser a única aluna trans e outras seis entraram na instituição.

Quando ainda cursava farmácia, pesquisava sobre a hormonioterapia e, como era militante da causa LGBT, principalmente das causas trans, aliava as duas coisas e participava de vários eventos para apresentar seus estudos.

Foi assim que conheceu servidores do Ministério da Saúde e teve a oportunidade de trabalhar no Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais da instituição. Após uma seleção e intensiva preparação, ela conseguiu a vaga e se mudou para Brasília.

Foto: Leonardo Arruda/ Especial para o Metrópoles
A faixa do segundo lugar no concurso Miss Curitiba Trans 2015

No ano passado, participou do seu primeiro concurso de miss. Era um desejo antigo. Achava glamoroso e mágico. Quando encontrou um que não levava só a beleza em consideração, entrou na disputa sem pensar duas vezes. No Miss Curitiba Trans 2015, as participantes tinham de desfilar, responder perguntas e fazer discursos de cunho social.

Quando chegou a sua vez, Alícia terminou sua fala com a frase: “Nós precisamos de mais travestis e transexuais em cima dos palcos e menos dentro dos caixões”. Com todos os seus atributos, físicos e intelectuais, conquistou o segundo lugar da competição.

Nesta sexta-feira (29/1), comemora-se o Dia Nacional da Visibilidade Trans e Alícia Krüger terá dois motivos para comemorar, pois também será sua formatura em farmácia pela UEPG. Ela se torna a primeira pessoa trans a ser formar pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e continuará lutando para que muitas outras trans possam realizar a conquista em outras faculdades brasileiras.

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