A vida depois de… ficar cego aos 33 anos
Hoje com 58 anos, ele se formou em fisioterapia, superou as limitações, conseguiu uma vaga na Escola de Música e luta para entrar no serviço público. “Eu era mais cego quando enxergava.”
atualizado
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O ano era 1989, Clodomir de Moraes, então com 33 anos, deu uma carona a uma colega. O combinado era levá-la até uma parada de ônibus na Asa Sul, mas tentando encurtar o trajeto para chegar mais cedo em casa, resolveu deixá-la em uma esquina da quadra 300. Quando entrou na pista, a carona colocou as mãos no volante e disse: “Não é aqui”. O movimento inesperado fez o carro bater no paredão do viaduto da 111 Sul.
Na época do acidente, não era comum o uso do cinto de segurança. Por isso, com o impacto, o motorista foi projetado para a frente, sendo arremessado através do vidro. Vários pedaços do para-brisa perfuraram os dois olhos comprometendo 100% da visão.
Clodomir passou por 13 cirurgias na tentativa de voltar a enxergar. Chegou a fazer uma campanha para financiar uma operação nos Estados Unidos. O Ministro da Justiça da época, vendo o empenho e a coragem, o presenteou com duas passagens.
Mas na esperada consulta, o médico americano disse que os olhos já estavam muito mexidos, que não poderia realizar o procedimento naquele momento. Em seguida, anunciou a fatítica notícia: precisaria voltar em seis meses. A primeira ida foi difícil, uma segunda viagem não era uma opção viável. Por não ter conseguido resolver o problema, Clodomir voltou deprimido dos EUA.
Se encontrando profissionalmente
Deficiente visual e desempregado, começou a pensar em como iria se sustentar. A nova condição lhe fez perceber que poderia contar com uma nova sensibilidade adquirida com as mãos. Procurou alguns cursos de massagem para estudar e virou especialista em técnicas manuais como Tui-ná (massagem chinesa), Shiatsu (técnica japonesa) e Osteopatia (método se baseia no diagnóstico diferenciado, no tratamento de várias patologias, além da prevenção da saúde, sem recursos fármacos ou cirúrgicos).
Quando começou a atender, não demorou para a clientela aumentar. Em um atendimento, apenas colocando as mãos nas pernas de um paciente para fazer massagem, sentiu um inchaço muito grande. O terapeuta se recusou a atendê-lo e pediu que procurasse um médico especialista urgente. O palpite estava certo: o homem estava com trombose venosa profunda.
“Existe sintonia entre duas pessoas caladas. Em alguns casos você só vai ouvir, não enxergar com os olhos” reflete.
Sucesso no novo ofício
Pessoas com os mais diversos problemas de saúde procuravam alívio nas mãos de Clodomir. As indicações foram aumentando, os casos de doenças ficaram cada vez mais sérias e o massagista decidiu se capacitar novamente.
Uma nova saga começava: procurar faculdades com curso de Fisioterapia preparadas para receber um candidato deficiente visual. Não existia material adaptado e isso dificultava na hora de estudar para as provas.Estava dando tudo certo, as pessoas só elogiavam, não sentiam mais dor. Eu era mais útil que antes do acidente. Mas, e se desse errado? Lidava com doenças graves, então achei melhor parar, estudar e voltar melhor
Clodomir de Moraes
“Em uma instituição, a pessoa indicada para aplicar a prova de inglês para mim, não sabia falar a língua. Na hora das questões eu não entendia nada, pois ela não sabia pronunciar as palavras estrangeiras. Em outra, na prova de Geografia, o aplicador da prova passava meus dedos na folha, em cima dos mapas, pois disse ter visto em algum lugar que essa era a forma do cego ler. Mas o material não era adaptado”, diz em tom de indignação.
Nova fase acadêmica
Após muitas situações frustrantes, Clodomir entrou para o curso de Fisioterapia na Universidade Católica de Brasília. “Esse período foi maravilhoso”, resume. Para não repertir as situações anteriores, pediu para fazer as provas de forma oral com os professores. Quando o método escolhido por seus mestres não conseguiam atendê-lo de forma satisfatória, ele explicava porque não funcionava. Aprendeu e ensinou muito a todos com a sua limitação.
Além de todos os cursos, hoje também é pós-graduado em Traumato-Ortopédica. “Sou muito feliz na minha profissão. Todos os dias aprendo mais, quero dar aos outros o que tenho de melhor. Não vou parar de estudar nunca”, afirma o profissional.
Na Justiça
Em 2013, fez o concurso da Secretaria de Saúde. A prova foi igual para todos os inscritos. Mas para os deficientes visuais, ela foi ditada. Clodomir alega que as três questões de raciocínio lógico não estavam adaptadas. Para piorar, a pessoa enviada para aplicá-la não tinha conhecimento de como tratar pessoas com deficiência.
Faltaram exatas três questões para a aprovação. Por isso, resolveu entrar na Justiça para garantir os seus direitos, ganhou em 1ª instância. Agora, aguarda a decisão da 2ª instância. O fisioterapeuta acredita na possibilidade de ganhar a causa, pois a Lei da Inclusão prevê provas adaptadas. O sonho dele é prestar serviço no SUS e atender quem mais precisa. “Minha caminhada não pode ser em vão”, explica.
Novos amores
Quando Clodomir sofreu o acidente já estava separado da primeira esposa. Após ter passado por tudo, resolveu que estava na hora de ir atrás do seu amor da adolescência, Alba Sandra Alencar da Silva, 56 anos. Eles não se viam há 21 anos, quando ele começou uma busca por seu telefone. O encontro foi marcado e seis meses se casaram.
Em setembro, o casal completa 20 anos de casados. Sandra foi uma parte essencial para a realização do sonho do fisioterapeuta. Ela levava e buscava o marido todos os dias na universidade, ajudava com os problemas do dia a dia e o apoiou em todos os momentos que foram precisos. Clodomir também foi o apoio de Sandra. Ele a inscreveu de surpresa no vestibular do curso de psicologia e hoje os dois trabalham juntos, cada um na sua área.
O outro amor é a música. Ele sempre quis tocar um instrumento. Ao descobrir cursos na Escola de Música de Brasília com partituras transcritas para o braile, decidiu se candidatar à vaga. Para isso, estudou sobre musicografia em braile, fez a prova e passou.
Depois descobriu que para frequentar as aulas do curso básico de flauta era necessário ter habilidade com o instrumento. Pegou um professor particular e resolveu o problema. Agora está na Escola de Música há um ano e meio, fazendo algo muito prazeroso e tocando todos os dias a sua música favorita, “Carinhoso”.
De toda a sua trajetória, Clodomir consegue tirar apenas coisas boas. Ainda com as cicatrizes do acidente no rosto, entendeu a mensagem que tanto queria. “A resposta de Deus para a pergunta ‘para que?’ veio. Foi para ser uma pessoa melhor, perceber o outro como ele é. Eu era mais cego quando enxergava” diz sorridente.