A vida depois de… descobrir uma família perdida na Hungria
Os pais de Gabriela Kőrössy nunca falaram muito do passado na Europa, mas, com a ajuda do Facebook, a confeiteira reencontrou os parentes
atualizado
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Na esquina da comercial da 214 Norte, existe uma preciosidade escondida perto dos prédios residenciais da quadra. Um café de atmosfera íntima é lar de doces e salgados que mantêm viva a tradição da culinária húngara e a memória de quem abandonou o país natal para fugir da guerra. A jornalista e fotógrafa Gabriela Kőrössy, 48 anos, é a responsável pela criação das delícias servidas no Duna – Casa Húngara. Ela baseia-se nas receitas da família e prepara tudo com excelência e carinho.
No Duna, não existe tempo. Gabriela tem calma ao criar pratos, chás e bebidas. A Dobos, torta tradicional e grande orgulho da casa, possui 12 camadas, cada uma assada individualmente. O caramelo, que cobre o preparo, também é feito separado e com cuidado.
Quando prepara a comida, a confeiteira lembra da mãe e revive memórias da infância. Mesmo com aparência tranquila e feliz, Gabriela não esconde a realidade e as dificuldades de imigrantes e refugiados – os dados mundiais mais recentes da Organização das Nações Unidas( ONU) apontam que são cerca de 70 milhões de pessoas nessa condição.
A mãe e o pai da confeiteira vieram para o Brasil em 1949 e 1953, respectivamente, como fugitivos da Segunda Guerra Mundial e se conheceram em Minas Gerais. Gabriela nasceu em Carmo do Cajuru (MG) e foi criada seguindo os costumes húngaros. “Não podia brincar na rua nem levar ninguém lá em casa, então ficava com minha mãe na cozinha”, recorda.
“Como ela gostava muito de cozinhar, isso tornou-se um elo de ligação bem forte, era a nossa forma de se divertir e ficar perto uma da outra”. Katarina, a matriarca, usava a culinária para se aproximar também dos outros filhos. Cada um tinha um prato predileto. Gabriela deliciava-se com a torta de maçã. Atualmente, a confeiteira é quem serve o jantar especial chamado töltött káposzta à filha, Manuela, 16 anos.
Gabriela cresceu ouvindo histórias divertidas da mãe sobre a Hungria, e a curiosidade a respeito de suas origens e da família foi aumentando ao longo dos anos. “Quando começava a questionar muito, ela se fechava, chorava e se trancava no quarto. Pensei que estava fazendo mal e parei de perguntar”, conta.
Inconformada com o silêncio da mãe, Gabriela entrou em contato com embaixadas e órgãos internacionais, com intuito de achar a família que tinha ficado na Hungria. Uma busca longa e difícil. “Mamãe dizia não valer a pena ir até o país ou conhecer meu avô. Ela nunca se abriu para falar da vida pessoal”.
Após a morte da mãe, o pai da confeiteira também adoeceu. “Pouco tempo antes do falecimento dele, brinquei perguntando se não tinha nenhum tio pelo mundo. A resposta foi ambígua: ‘Eu não’”.
Depois de alguns anos, Gabriela ainda procurava pela família. O marido, Laycer, incentivou a confeiteira a publicar um texto em húngaro no Facebook com algumas fotos do arquivo da mãe. De imediato, não houve resposta. Mas, quando a rede social lembrou ao casal que o post havia sido feito há um ano, eles compartilharam novamente.
O resultado foi completamente diferente. Gabriela recebeu mensagens de pessoas de vários países. Descendentes de húngaros na Austrália, China, Canadá e Estados Unidos entraram em contato e compartilharam suas histórias. A publicação alcançou muitas pessoas, a confeiteira virou assunto na Hungria e foi procurada por redes de televisão do país querendo saber mais sobre a situação dela.
“Eram tantos comentários, não consegui ler tudo até hoje. Olhando rápido pelas conversas, vi uma foto que lembrava uma do arquivo da mamãe”. A dona da imagem era uma prima distante: o primeiro elo de ligação com o passado. Em um outro dia, Gabriela recebeu mensagem de uma pessoa pedindo para conversar com ela via Skype. “Estávamos assustadas, começamos a falar e percebemos ser da mesma família”, conta.
Durante o processo, Gabriela tinha entrado com um pedido de cidadania húngara. Queria conhecer o país de sua família e Manuela desejava estudar música no Leste europeu. Ao procurar os documentos para provar sua afiliação com a Hungria, ela achou os arquivos necessários e duas certidões de nascimento ligadas à mãe. A explicação dada à confeiteira foi que ela tinha duas irmãs, filhas de Katarina.
Assim, Gabriela descobriu um pouco mais sobre a mãe. Katarina foi para a Itália com o primeiro marido grávida de duas filhas. Lá, ela deu à luz e deixou as crianças em um orfanato, onde elas foram buscadas pelo avô e criadas por ele. A húngara veio ao Brasil com o segundo companheiro, que a deixou. Quando chegou em Minas Gerais, conheceu o pai de Gabriela e formou família.
“Nisso, surgiu a oportunidade de irmos até a Hungria. Minhas duas irmãs já tinham falecido, mas conheci um sobrinho e descobri que minha mãe manteve contato com ele por um tempo”, explica. Segundo alguns parentes, o avô de Gabriela fez buscas semelhantes às dela, em órgãos e embaixadas, mas não obteve sucesso.
A minha história não é extraordinária, é uma consequência da [Segunda] Guerra. Quando você conhece outros imigrantes, os relatos são bem doloridos. No Duna, ouvi muitos depoimentos difíceis de famílias separadas
Gabriela Kőrössy
Abrir um café no Brasil era ideia do pai de Gabriela. “Ele queria uma forma de agradecer ao país por ter nos recebido”, enfatiza. Depois da viagem à Hungria, o marido estimulou a esposa a montar o Duna. A mineira fez alguns cursos e pediu aprovação para a Embaixada Húngara em Brasília, que adorou os produtos.
Nas mesas e no balcão da cafeteria, mais histórias de famílias imigrantes e refugiadas são contadas e retomadas. Gabriela recebeu um cliente que só falava húngaro com a mãe, mas, após da morte dela, ele desaprendeu o idioma. Quando foi ao café, o homem relembrou emocionado algumas palavras e expressões ao ser atendido pela jornalista.
“É um ambiente comercial, mas fizemos tantos amigos. O nome foi pensado nisso, porque adoramos receber as pessoas na nossa casa”, atesta. O café é um lugar também para socializar e abriga diversos clubes, como o do vinho, do chai e do livro. “O verdadeiro patrimônio do Duna não somos nós ou o que produzimos, mas esse carinho”, conclui Gabriela.