A vida depois de…desafiar os limites da síndrome de Down com os pincéis
Aos 11 meses, Lúcio Piantino teve seu primeiro contato com as tintas. Depois disso, fez mais de 10 exposições, teve sua arte exposta na Itália e lutou contra o preconceito para ser artista plástico
atualizado
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A história começa antes da história. Quando estamos chegando ao local combinado para conversar com Lúcio, ele nos avista de longe, abre os braços e assim vem ao nosso encontro, dando um caloroso abraço em cada um. Em menos de cinco minutos estamos todos convidados para o seu aniversário, que será celebrado com uma grande festa, em julho.
Assim é o artista plástico Lúcio Piantino, 20 anos. O primeiro contato com os pincéis veio aos 11 meses, quando nem andava ainda. Aos 13 anos fez sua primeira exposição individual, aos 15 tirou o registro de artista plástico profissional, já fez mais de 10 exposições, incluindo uma na Itália. Ah, o artista tem síndrome de Down.
Ao nascer de parto normal no dia 11 de julho de 1995, uma terça-feira, Lúcio demorou algumas horas para ser levado até sua mãe, que já estava ansiosa. Quando finalmente o pequeno chegou, ela tirou os panos que o cobriam, contou os dedos, checou as orelhas e observou todas as partes do seu caçula para ter certeza de que estava tudo certo. Como já tinha duas outras crianças, a mãe percebeu que Lúcio era diferente, muito molinho. Só no outro dia ficou sabendo que o menino nasceu com síndrome de Down.
Ouviu de vários médicos que as crianças que nascem com a condição têm dificuldades para andar, falar, aprender, se desenvolver de uma forma geral, e que não seria diferente com Lúcio. Os médicos estavam errados.
“Eu danço hip hop, pop, funk, forró, faço mágicas, malabares, capoeira, grafite, sou palhaço, ator, pinto, toco bateria e violão. Quer mais?”, pergunta Lúcio com um sorriso largo, mostrando – sem intenção – que os médicos estavam errados, bem errados.
O menino alegre e cresceu sem grandes problemas de saúde e segue firme e forte. Apenas dois episódios médicos marcam sua vida. Com três anos já fazia muita coisa, mas ainda não falava. Só então foi diagnosticado com um problema auditivo. Não ouvia 40% de um ouvido e precisou ir para Bauru (SP) fazer um tratamento. Usou aparelho por três anos e nunca mais precisou.
O mais sério dos casos veio aos 10 anos, quando precisou operar o coração, decorrência de um erro médico. Ele tinha uma fissura no órgão e o doutor disse que fecharia sozinho. A ferida só aumentou e a operação foi necessária.
Em casa, o garoto sempre teve muito estímulo da família. Rodeado por artistas — a mãe é Lurdes Danezy Piantino (conhecida como Lurdinha), designer de jóias e artista plástica, o pai é o artista plástico Lourenço de Bem e o avô paterno é Glênio Bianchetti — Lúcio faz questão de mencionar que ter esses exemplos foi fundamental para desenvolver o seu talento. Os irmãos Pedro, 26 anos, e Joana, 23, também têm a veia artística.
Ele sempre teve a veia artística, desde que pegou pela primeira vez nos pincéis. Até os 12 anos não ensinamos nada, apenas disponibilizados o material. Ele é um pintor.
diz a mãe Lourdes Danezy
Por insistência e luta da mãe pelos direitos do filho, Lúcio sempre estudou em escolas regulares, que supostamente teriam a obrigação de fazer a inclusão do aluno. Mas não foi isso que o garoto e a família encontraram por onde ele passou.
Quando cursava a 5ª série, o artista foi discriminando por quem deveria dar o exemplo: os professores. Uma delas dava um pulo para trás toda vez que o menino se aproximava para não encostar na criança. Outra, aumentava o volume do aparelho auditivo de Lúcio e gritava ao pé do seu ouvido, mesmo com os pedidos para que ela parasse. Em um caso mais sério, o garoto foi amarrado em um saco plástico junto com as garrafas pets arrecadadas pela escola.
Tanto sofrimento fez com Lúcio desistisse de estudar e, cansada do preconceito, a família concordou. Isso o aproximou ainda mais da arte, pois dedicava seu tempo às tintas e telas. Após um ano fora, ele voltou às salas de aula em uma nova escola. A história não foi muito diferente, mas conseguiu concluir o ensino fundamental.
Agora, Lúcio participa do projeto Educação de Jovens e Adultos (EJA) para terminar o ensino médio. O artista fala em fazer faculdade ou conciliar outra profissão com a carreira de pintor. Entre as opções estão ser advogado, deputado, marinheiro, policial, bombeiro e outras diversas que aparecem de vez em quando. Muitas dessas profissões não permitem por lei candidatos com síndrome de Down.
O talento quebra o preconceito
A paixão pela arte foi súbita. Aos 13 anos, pintou “O Verdadeiro Amor”, seu primeiro quadro. Em 2001, o jovem publicou sua arte no livro “Cadê a síndrome de Down que estava aqui? O gato comeu…” de autoria da mãe Lurdinha e de Elizabeth Tunes, pela Editora Autores Associados. Aos 13 anos, fez a primeira exposição individual “Matando Aula”, no Espaço Cultural CODEVASF e a segunda exposição “Matando Aula II – O retorno?”, no Jardim Botânico Shopping. Se você acha que os títulos das exposições foram uma provocação ao que Lúcio passou nas escolas, acertou.
Entre as tantas exposições que participou, mostrou seu trabalho na “Olhares”, na Biblioteca Nacional e no Museu Nacional de Brasília. Também participou da exposição em comemoração ao Dia Internacional da Síndrome de Down no Plenário da Câmara Legislativa de Brasília. Expôs “O menino que virou arte” no Espaço Cultural STJ, que posteriormente foi selecionada por edital e teve uma tela na Casa Cor Brasília.
Aos 15 anos, tirou seu registro de artista plástico profissional expedido pela Secretaria de Cultura do DF. Em 2011, fez a exposição “Sou artista” em três locais diferentes. No ano seguinte, o documentário “De arteiro a artista: a saga de um menino com síndrome de Down” , de Rodrigo Paglieri, que conta a trajetória de vida e profissional do Lúcio, foi aprovado e financiado pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC), e exibido no 5º Festival Internacional de Filmes sobre Deficiência — Assim Vivemos. Na mesma época, o FAC também financiou a exposição com 20 quadros do artista, que foram expostos no mezanino do Teatro Nacional e na Cia Lábios da Lua.
As imagens de Piantino foram parar no Domingão do Faustão. Em 2014, ele foi homenageado no Telão do Domingão, na semana em que se comemora o Dia Internacional da Síndrome de Down (21/3).
Seja usando pinceladas grossas ou usando o método dripping, no qual a tinta é aplicada em gotas na tela, Lúcio já produziu mais de 200 telas e tem 14 exposições na conta, considerando as individuais e comunitárias.
Lúcio ganha o mundo
A família possui um box na Feira da Torre onde expõe os trabalhos de Lurdinha e Lúcio. Como nada acontece por acaso, em 2013, o superintendente da Galleria Nazionale Dell’Umbria, na Itália, Fábio de Chirico, e o presidente do Centro Studi Cittá Del Sole, Giuseppe Capparelli, estavam conhecendo a Feira quando avistaram as telas do artista e se encantaram.
Os homens perguntaram se havia interesse do artista em expor seus trabalhos na Itália e deixaram um cartão com seus contatos. No início de 2014 veio o convite oficial para Lúcio participar do evento Polimaterico, realizado em dezembro daquele ano, na Itália. Seria o terceiro ano do evento que tem como objetivo promover a aproximação das pessoas com deficiência à arte contemporânea.
A Itália ficaria responsável pela estadia de Lúcio e Lurdinha, a montagem das obras e da exposição, e pela compra do material necessário para o workshop. Ficariam faltando apenas as passagens. Como não conseguiram recursos junto ao governo local, nem ao Federal, a família, amigos e até desconhecidos começaram incansáveis ações para arrecadar o fundo necessário.
E se tem algo que Lúcio ostenta nessa vida são amigos. Famoso por conhecer muita gente, a mãe diz que é quase impossível sair de casa e não encontrar um amigo fiel do filho pelo caminho. Ele mesmo faz questão de declarar que conhece metade da cidade. E não é difícil de acreditar, Lúcio tem carisma de sobra.
Contatos são sempre bem vindos. Foram feitas rifas de quadros, feijoada, leilão de obras cedidas por amigos entre outras diversas ações. E deu tudo certo: mãe e filho embarcaram rumo à Itália.
Ele participou como artista convidado, fez uma exposição individual com 10 telas e deu um workshop de pintura para 20 italianos com deficiência. “Ver o Lúcio ter o reconhecimento do seu trabalho fora do país, ter sido tratado como artista e respeitado como tal foi um dos momentos mais felizes da minha vida”, revela Lurdinha.
E o tour não para por aí. No próximo dia 19 de março, as telas que foram expostas em Perúgia e as criadas durante o workshop dado no Polimaterico serão expostas em Roma. Dessa vez o artista e sua mãe não acompanharão fisicamente. Ao falar da Itália, Lúcio se anima e lembra das comidas maravilhosas que experimentou em sua viagem e confessa ter um fraco por macarrão.
As obras do artista podem ser encontradas na Expoarte Galeria, na UrbanArts e no Box 167, bloco E, da Feira da Torre. Ele tem contrato ainda com a galeria americana P-Square Gallery, que vende seus quadros de forma online. Para adquirir uma tela de Lúcio é preciso desembolsar em média R$ 1.100 por metro quadrado.
E por aqui o sucesso continua repercutindo. Ele passou os últimos dias assistindo os filmes para na sexta-feira (4/3), ser o debatedor no projeto “Assim Vivemos- Festival Internacional de filmes“ sobre deficiências, no CCBB Brasília. Na programação, 33 filmes nacionais e internacionais que tratam da inserção social de pessoas com deficiência.
Com seus múltiplos talentos, Piantino também se prepara para lançar a peça “O improvável amor de Luh Malagueta e Mc Limonada”, onde atua como Mc Limonada. O objetivo da obra é provocar uma reflexão sobre preconceito, discriminação e inclusão de forma divertida e bem-humorada.
Os planos não acabam por aí. Lúcio está pronto para mais. Cantarolando sua música preferida do momento (Metralhadora, da banda Vingadora), o pintor diz que tem vontade de fazer tudo. Alguém dúvida que ele consiga?