Um pastel de afetos pra Natalha, trans agredida na Rodoviária de todxs
Reflexo do Brasil, a plataforma de embarque e desembarque é símbolo da luta diária, da diversidade dos passantes e da injustiça social
atualizado
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Não existe um lugar mais brasileiro em Brasília do que a Rodoviária do Plano Piloto. Ao nos jogamos no vaivém da multidão, entendemos a gênese da capital federal. Ouvimos tantas sotaques.
Como pode ter tantos sotaques numa só cidade?
Cada um mantido no seu jeito de cantar a fala. Ali, compreende-se que Brasília não é só o ordenamento arquitetônico, as superquadras livres e cheias de frutas, a escala de monumentos que nos engole. Brasília é a possibilidade concreta de se ter um povo misturado em pleno convívio. Essa é a maior utopia.
Outro dia, acompanhei uma mãe que carregava um filho especial de uns dez anos no colo. Ela atravessou o burburinho de gente, seguiu para o metrô e embarcou com uma nobreza comovente.
Rodoviária é um pedaço do Brasil das diferenças. Toda vez em que, mergulhamos numa crise econômica é para lá que correm os novos moradores de ruas. Sim, a Rodoviária é abrigo noturno dos que têm o céu de Brasília como teto diário. Ali, brasileiros solidários levam sopa e lanche para o povo de rua, condenado à miséria pelos lobos que se entocam no Congresso e nos Palácios traçados por Niemeyer.
Gosto de passar na Rodoviária bem na hora da loucura da voltar pra casa. Ali, encontro os vendedores de frutas, as mulheres que estendem os panos no chão para vender peças de roupas, enquanto a fiscalização do GDF se distrai comendo um pastel na Viçosa.
Ah, a Viçosa. Quantas vezes saí de teatros e em vez de correr para restaurantes da moda fui para a pastelaria comer um triplo (dois pastéis e uma caldo de cana).
Há riscos em residir no Plano Piloto e suas administrações com alto Índice de Desenvolvimento Humano. Um deles: a anestesia social. Nessa época (hoje moro numa Região Administrativa), era como eu furasse a bolha alienante.
Por ali, sempre há uma criança estava à beira do caixa pedindo as moedinhas que voltam de troco
Uma criança? À meia-noite, têm crianças na Rodoviária pedindo dinheiro. De dia, também. Brasília que muitos não veem está bem à balcão da Viçosa, querendo matar a fome. As travestis, os índios acampados, os evangélicos na volta do culto, os sem-carro, os sem-teto, os hippies que trançam colares, as meninas e os meninos, meninxs que voltavam apaixonados na noitada no Bar Barulho.
Como doeu ler aqui Metrópoles a notícia de que a professora Natalha Silva Nascimento foi agredida verbalmente pelas bocas masculinas da Viçosa. Sofria regularmente violência psicológica por ser o que quer ser. Um dia, reagiu e foi supostamente espancada por mãos que servem os pastéis da Viçosa. Mãos que entregam o alimento teriam socado o corpo trans e negro e já tão doído em ser trans e negro.
A Pastelaria pediu desculpas à população e demitiu o suspeito de agressão. Assumiu em redes sociais, ao menos, o ocorrido. É pouco. É preciso educar e mudar a cultura machista, transfóbica e preconceituosa de funcionários no trato às pessoas diversas: trans, gays, lésbicas, negras, gordas, magras, em situação de rua. Sejam que for. Quem come e paga por um pastel é um humano e merece respeito.
Como dói mais ainda compreender que a violência ocorreu nessa Rodoviária de todxs. Travou a garganta. Difícil de engolir