Três horas para conseguir um autógrafo de Fernanda Montenegro
Atriz esteve em Brasília na terça-feira, dia 19.11, para lançar fotobiografia de 500 páginas no Teatro da Rede Sarah
atualizado
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Era 18h35 quando chegamos, eu e o ator Jones Abreu Schneider, ao foyer do estupendo Teatro da Rede Sarah. O livro Fernanda Montenegro itinerário Artístico estava à venda na entrada por R$ 160. Compramos um exemplar para o acervo do nosso coletivo, Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada. São 500 páginas e 2,7 quilos de 100 anos de história do teatro brasileiro.
O desejo é de consumi-lo imediatamente, mas o atendente o coloca numa sacola de papel do Sesc. Avisa que a obra já está previamente assinada para que a atriz não se canse muito. Mesmo assim, ela receberá um por um para escrever o nome na página da dedicatória. Recebemos a senha 068.Sentamos bem pertinho do palco, na segunda fila, e, aos poucos, o teatro enche de gente. Muitos usam jaleco brancos do hospital. Há também cadeirantes, possivelmente em tratamento. Na primeira fila, o ator e diretor Fernando Guimarães cerca-se dos seus alunos da Faculdade Dulcina de Moraes. Exibe orgulhosamente a senha 001.
Fernanda Montenegro é anunciada e aplaudida de pé. Visivelmente emocionada, faz uma recepção econômica. Fala sobre o momento atual no Brasil e evoca à persistência diante de tempos políticos hostis à cultura. Exalta a marginalidade do teatro, o que o fez sempre seguir em frente. Passa-se um vídeo informativo. Rapidamente, produtoras montam a mesa. Fernanda senta-se e recebe um a um.
Como uma mágica, não é mais a atriz. Lembra-me Dora, a personagem apaixonante de Central do Brasil, que escrevia cartas de saudades ditadas por parentes separados pela distância. É um outro tempo que se estabelece no Teatro Sarah. Fernanda-Dora não corre contra o relógio. Ouve o que cada um tem a dizer.
Vejam essa mãe. O filho está estudando teatro em São Paulo num momento político como este. Peço desculpas a todos, mas preciso ouvir atentamente essas histórias
Fernanda
Impossível tirar os olhos de Fernanda. Atentamente, ela acolhe cada pessoa que chega carregando suas histórias e seus amores por essa atriz símbolo da resistência do teatro nacional. De repente, um menino sobe ao palco e corre para o colo da atriz. Ela para tudo e o abraça.
Poderia ser meu neto. Acho que ele quer ser ator. O garoto responde afirmativamente com um sonoro “é”
Fernanda
Em êxtase, o público aplaude calorosamente o gesto da atriz. Há uma energia de amor no ar. Do nosso lado, uma diretora se preocupa com o horário do ensaio teatral na Oficina do Perdiz. Já são quase nove horas e o número da senha para conversar com Fernanda está entre 30 a 35. A numeração dela é 84. Atenciosa, a produtora de Fernanda, Carmen Mello, tenta ajudá-la e propõe que a plateia seja consultada para permitir ou não que a diretora passe a frente de todos.
E se fosse Fernanda que tivesse esse ensaio, o que ela faria?
Jones Schneider
Certamente, ela pegaria o seu livro e iria ao ensaio sem o autógrafo
Carmen
A resposta faz a diretora desistir. As senhas seguem sem pressa. Fernanda fala com Dr. Lúcia Braga, presidente da Rede Sarah, sobre a última vez em que esteve naquele teatro. Era uma leitura dramática comandada por Fernando Torres, em que estava ali em tratamento. Ele dirigia o evento como forma terapêutica.
Chegamos aqui de surpresa. Eles nos viu no camarim. Estava transformado. Cuidava dos detalhes, da luz e do grupo de amadores. Fez uma leitura muito feliz
Fernanda
Os olhos de Fernanda estão cheios d´água. Estamos pertinho dela. Carmen avisa a Fernanda que somos artistas. Ela abre um sorriso acolhedor. Avisa à plateia que tenha mais um pouquinho de paciência porque somos colegas de teatro.
Preciso dedicar um tempo maior para ouvir os meus colegas. Aqui, nesse livro eles estão presentes. Muitos se foram
Fernanda
Falamos de As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, de Fassbinder, um grande sucesso na carreira de Fernanda. Essa peça inspira a criação de L, O Musical, um de nossos espetáculos. Ela reage com um sorriso ao saber que Aurélio de Simone, iluminador de Petra, estava conosco na criação e na temporada. Recorda-se de histórias
Foi um trabalho extraordinário que fizemos. Um sucesso, num tempo em que viajávamos com o teatro de Norte a Sul do país
Fernanda
Interessa-se pela nossa história, ri do nome Criaturas Alaranjadas, nos dá conselhos artísticos preciosos. Parece que estamos escrevendo uma carta para o futuro. Olho para Jones, que está muito emocionado. Fernanda toca em nossas mãos
Coragem! Adiante! Toca o sino!
Fernanda
Rimos juntos, nos abraçamos.
Sigam, meninos. Montem um Fassbinder por mim
Fernanda
Saímos dali quase três horas depois que tocamos pela primeira vez no livro. O tempo não pesou, deslizou-se sobre nós como uma brisa chamada de Fernanda Montenegro