Taguatinga é o antídoto antimonotonia ao Plano Piloto
Levei meu amigo entediado para conhecer o centro cheio de vida. De visita à loja de discos à incursão por cine pornô, a cidade se desvelou em carne e osso
atualizado
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Um amigo recém-chegado de São Paulo a Brasília me pergunta se existe um antídoto para a caretice do Plano Piloto. Ele está entediado com as ruas vazias. Sente falta de gente andando pra lá e pra cá. Anda saudoso de o coração pulsar numa paquera fortuita na hora do almoço. Deprime-se por achar todo mundo triste com a falta de umidade e chateia-se de ter que se deslocar quilômetros para tomar um chope gelado no fim de tarde. Ah, ele me lembra ainda da mordaça da Lei do Silêncio, que cala o burburinho das madrugadas.
Não pensei duas vezes. O remédio para o seu mal atende por Taguatinga, mais precisamente o Centro, onde a vida borbulha como ela é. Marcamos na Praça do Relógio, às 9h da manhã, de uma sexta-feira de folga. Ele vindo de metrô da estação Central. Eu, do Terminal Samambaia. Chegamos e fomos direto para a Discodil, uma das poucas lojas dessa outrora poderosa rede que sobreviveram à massificação dos shoppings. Ali, entre CDs, DVDs e instrumentos musicais, caçamos relíquias como os discos de Vanusa e Wanderléa do começo de carreira e episódios de Batman & Robin dos anos 1960.
Rosa Vermelha
Curiosos, paramos paa conversar com uma delas. Com um cigarrinho em uma das mãos e um copo de cerveja na outra, ela nos conta que pouca gente as aborrece.
De vez em quando, aparece um crente zoando. Mas, no geral, é só felicidade. As pessoas sabem que esse é nosso ganha-pão.
Meu amigo a chama de Rosa Vermelha, porque traz no cabelo uma flor de plástico. Compramos uma cerveja e prolongamos o bate-papo. Falamos amorosamente de Taguatinga.
Brasília fica no chinelo. Tem homem que vem para se divertir aqui. É outro nível, meu bem
Rosa Vermelha
Como não rolaria um programa a três, Rosa Vermelha agradeceu a cerveja e nos dispensou com um sedutor “até logo”.
Executiva em Nova York
Por sugestão dela, atravessamos as pistas para conhecer o Cine Paranoá, com filmes pornôs incessantes. Era perto de meio-dia quando entramos no espaço aparentemente bem cuidado. O que bateu uma nostalgia imediata dos cinemas de rua. No Plano Piloto, só resta o Cine Brasília, protegido pelo Estado. Não há mais o Cine Ritz, no Conic, com shows de strip-tease ao vivo. Soube que depois de ser alugado para um templo religioso, voltou a ficar à disposição do mercado. O Paranoá segue como o último refúgio de cine pornô no DF, o que de cara merece respeito aos que curtem o segmento.
Lá dentro, o movimento estava relativamente intenso para o horário. Homens em sua maioria, muitos circulando no escuro. No entanto, havia dois casais (aparentemente heterossexuais) namorando entre as fileiras. O filme era norte-americano. Tentamos descobrir o nome do título, mas a bilheteira não sabia informar porque um emendava no outro. Não foi possível comprar pipoca, mas as latinhas de cerveja estavam geladíssimas.
Sentamos para apreciar a película, cuja história se centrava em Nova York, apesar de não ter cenas externas (uma maldade!), com a chegada de uma executiva à cidade e seu envolvimento com homens diversos.
O filme durou o tempo da latinha de cerveja e saímos felizes para explorar o colorido comércio de camelôs e lojas que não existem nos shoppings.
Incrível Hulk
No meio do caminho, avistamos uma curiosa escola de efeitos especiais que oferece cursos com plataformas idênticas a utilizadas em Hollywood. Quem garante é o instrutor Fernando, que nos mostra a instalação. Empolgado, meu amigo se interessa em fazer o módulo de esculturas em 3D e marca uma aula gratuita. No foyer, há uma incrível estátua de Hulk projetada e esculpida na instituição. Louco por quadrinhos, ele quer projetar e imprimir imagens dos vilões que infernizam a vida da dupla dinâmica, Batman & Robin.
Temos um público de artistas, publicitários, jornalistas e universitários, vindos de todos os cantos do DF. Escolhemos Taguatinga porque é um lugar estratégico
Fernando
Fígado com jiló
Estávamos com fome. Fernando nos indica os shoppings próximos. A gente agradece. O desejo é uma birosca, com mesa na calçada. Não tem problema ser abordado por morador de rua. Caminhamos por umas alamedas comerciais cheias de barzinhos e paramos num que anunciava “bife de fígado com jiló” como prato do dia. Sentamos e só saímos de lá quando o metrô voltou a funcionar, às 17h. Sim, porque, inacreditavelmente, estamos há mais de um mês de greve e os trens só rodam em horário de pico.
Meu amigo ficou indignado com a extensão da greve. Perguntou por que o povo não está nas ruas em protesto. Falou que no trabalho dele, lá na Esplanada, ninguém comenta sobre essa paralisação. Informo-o que a população do Plano Piloto quase que não usa metrô. A maioria tem carro, até os estagiários. A gente riu, brindou e concluiu.
A vida chama-se Taguatinga!
E olha que a meu amigo só conheceu um pedacinho desse antídoto antimonotonia.