Réquiem para Antônio Pompêo. Ou por que as personagens negras não envelhecem nos folhetins
Morte do ator e militante pelo espaço do negro no mercado da cultura é ponto de reflexão para pensamos numa indústria de entretenimento, na qual a cor da pele não seja mais requisito de seleção
atualizado
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As personagens negras da tevê brasileira dificilmente envelhecem. Se a próxima novela não for de tema escravagista ou não tiver velhos tipos subalternos, dificilmente haverá espaço para esses grandes intérpretes. Aos poucos, eles minguam. Até desaparecer completamente da tela. Talvez isso explique por que as damas negras, Ruth de Souza, Léa Garcia e Chica Xavier, tenham saído tão precocemente dos folhetins. E o mais grave: as últimas aparições tenham sido em papéis estereotipados.
Se envelhecer numa tevê dominada por corpos belos e rostos sem rugas é quase um milagre, imagine acrescentar o quesito cor da pele negra, historicamente desmerecida na história do folhetim? Quando um autor deseja um intérprete em sua trama, é possível vencer barreiras naturais da idade. Uma das grandes atrizes brasileiras, Cleyde Yáconis foi convidada por Silvio de Abreu para fazer “Passione” (2010). Deu vida à fogosa Brígida, personagem escrita sob medida para ela. Com limitações graves de saúde, ela teve uma infraestrutura especialmente montada para que pudesse gravar com qualidade de vida. E brilhou numa atuação inesquecível, três anos antes da morte. Talvez, falte esse desejo!
A angústia de Pompêo
A maioria dos atores quer trabalhar até quando o “corpo-instrumento” estiver em condições físicas de dar conta dessa complexa arte de atuar. Não se fala em aposentadorias num ofício historicamente complexo, sobretudo, num país ainda longe de valorizar a cultura. Essa angústia está diretamente relacionada com a morte de Antônio Pompêo, um ator-militante que, diante das adversidades de se firmar como ator negro, tornou-se um ativista. Em 1984, ao lado de outra dama negra, Zezé Motta, criou o Centro de Informação e Documentação do Artista Negro (Cidan) para formar um banco de talentos e instigar o mercado.
Pompêo foi um grande ator mal aproveitado. Não teve o grande reconhecimento que merecia e acho que morreu de tristeza. Meu amigo estava recluso, deprimido com a falta de oportunidades de trabalho. Essa é a realidade.
Zezé Motta
Escrava Mãe
O desabafo da amiga e atriz nas redes sociais é o indício de que estamos longe de ter uma democracia racial dentro do maior mercado de entretenimento brasileiro: a indústria televisiva. Zezé Motta é um exemplo. Intérprete e cantora de primeira grandeza, tem aparições aquém do que poderia fazer na tevê. Com o talento incontestável, ela deveria ter espaço comparável a contemporâneas como Cristiane Torloni e Renata Sorrah. Interpretaria, com brilho, de vilã à protagonista de tramas contemporâneas. Ao que se sabe, só voltará a ter destaque em trama por conta do tema abolicionista, na esperada “Escrava Mãe”, da Record.
A telenovela brasileira, considerada espelho da nossa sociedade, é um gênero que avança lentamente em linguagem e posicionamentos políticos. Produto iminentemente preso às agruras do mercado, o folhetim está cerceado pela audiência. Nele, ainda se discute, a cor da personagens. No teatro e no cinema, a pele é a alma do intérprete. Se houve avanços, foram a conta-gotas.
O seriado “Mr. Brau” diz muito sobre essa pequena quebra de margem. Mas é preciso, assim como é feito na vida real, com o sistema de cotas, inundar as tramas com personagens cuja cor não seja um pré-requisito de seleção.
A força de Luanda
Atualmente, na grade da TV Brasil, a trama angolana “Windeck” é um sonho. Gravada em Luanda, todos os intérpretes são negros e ocupam os mais variados status social de um folhetim. As discussões da narrativa, de poder e de glamour, não passam obviamente por questões raciais. São dramas produzidos por humanos. Esse talvez seja um patamar que ainda estamos longe de presenciar. Enquanto isso, que a morte de Antônio Pompêo, ator potente reduzido à tristeza e à depressão, nos sirva de reflexão.
https://www.youtube.com/watch?v=nu6a8fm-k0s
E viva Grande Othelo, cujo centenário passou desapercebido em 2015.