Quando as divas tiram o Grammy e a indústria pop da chatice
Beyoncé, Lady Gaga, Adele e Rihanna transformaram a edição de 2017 numa festa feminina
atualizado
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Errar é humano, diz a máxima. Mas admitir o erro publicamente é essencialmente feminino. A cultura masculina ocidental não ensinou aos homens que falhar faz parte do show. No Grammy Awards 2017, a britânica Adele desafinou mais uma vez. Respirou fundo, soltou um palavrão e mostrou ao mundo o quão falíveis são os astros. Pediu a todos uma segunda chance e homenageou singelamente George Michael.
Minutos depois, o microfone de James Hetfield, da banda Metallica, falhou e “Moth into Flame” foi interpretada à meia-boca. O vocalista seguiu como pôde até ser acolhido pelo microfone de Lady Gaga, numa performance prejudicada pela falha técnica e pelo excesso de teatralidade (fogo irritante no palco e figurantes por toda parte). Terminou a apresentação esbravejando. Cabeças devem ter rolado. Enquanto Gaga, cada vez mais múltipla, regojizava-se do mosh, talvez o melhor momento do duo.
Arrisco a dizer que se não fosse a elegância e o talento estupendo de Bruno Mars a cerimônia do Grammy 2017 teria ovário, ventre, seios e uma grandiosa vagina entre as pernas. Há tempos a indústria da música norte-americana gira em torno de suas divas. É preciso clamar por uma Madonna a cada geração para manter o mundo interligado naquela que é, para desespero dos antiamericanos, a melhor música do mundo (do pop ao R&B; do jazz ao country, do gospel ao blues).
Uma dessas rainhas, Beyoncé explodiu esfuziante no palco do Grammy e não tinha como não se lembrar de Leila Diniz, nos repressivos anos 1970, com a barrigona, grávida de Janaina, exposta ao vento. Naquela época, a maternidade agredia os “caretas” e a liberdade feminina podia ser ir de biquíni à praia, feliz e sensual.
https://youtu.be/qVXRr_s54SI
Redefinida como uma intérprete cheia de ideologias, Beyoncé fez plateias mundiais repensar sua identidade de raça com “Lemonade”, álbum, talvez, politizado demais para uma indústria fonográfica ainda presa a padrões seculares. Como uma Oxum (orixá mãe do panteão de deuses africanos), apresentou-se ao mundo uma performance cheia de referências religiosas à paz.
As cantoras mundiais se tornaram fortes influenciadoras políticas no século 21. Há uma geração de fãs que não copiam exatamente as roupas extravagantes, as danças que desconcertam o esqueleto e decoram cada sílaba das canções. Aderem à forma de pensar e de ver o mundo.Quer algo mais político do que clamar pela paz numa nação, hoje, dirigida por um senhor da guerra?
Adele, com seu discurso sincero e feminino, e Beyoncé, com a postura de identidade, não rivalizaram como nos velhos tempos. Uma declarou-se em solidariedade e respeito à outra, reforçando o conceito de “sororidade”, a aliança que move o movimento neofeminista.
Em que pesem a cafonice do tapete vermelho e as mesmices da cerimônia, a festa de Adele, Beyoncé, Lady Gaga e Rihanna (que apesar de não ter ganho nenhuma estatueta, foi uma das atrações mais esperadas pela audiência) é sinal de um tempo de divas engajadas e capazes de passar a perna num Grammy antes tão mercadológico e agora um pouco mais humanizado.