Prisão do artista Maikon K é sintoma de uma Brasília careta e covarde
A incapacidade das autoridades de perceberem a diferença entre atentado ao pudor e performance de arte indica que voltamos às trevas
atualizado
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Todos os artistas do Distrito Federal devem estar envergonhados com a ação da Polícia Militar em interromper, danificar a obra e prender o performer paranaense Maikon K, que integrava a mostra Sesc Palco Giratório, uma das mais importantes e respeitadas do país. Uma mistura de constrangimento com sensação de atraso em ter uma força de segurança na capital federal incapaz de diferenciar atentado ao pudor de manifestação artística; ato obsceno de espetáculo de dança.
Não precisa nem ter se aprofundado no estudo da história da arte para entender que a nudez catalisa o corpo como um suporte livre de expressão, suprimindo âmbitos pornográficos (base do crime de atentado ao pudor). Quando um artista tira a roupa numa peça de teatro, numa performance, num espetáculo de dança, põe-se o corpo como elemento de linguagem.
Mesmo que essa percepção seja inalcançável para alguns espectadores, o nu artístico jamais deveria ser um ponto de interrogação para representantes do Estado, que precisam ter discernimento entre o legal e o ilegal.
Ícone da modernidade, a capital da República sedia importantes festivais de artes cênicas, um deles criado e gestado por anos pelo atual secretário de Cultura, Guilherme Reis (que, em nota, pediu desculpas ao artista). A cidade é, e deve ser, vitrine do que há de mais contemporâneo no país.
O que se viu com a prisão de Maikon K foi a incapacidade de o Estado em garantir ao espaço público de vivência artística a segurança e a liberdade de sua realização
A sensação de vergonha é tanta que nos coloca num estágio de alerta. Até que ponto, artistas-criadores estão seguros se as autoridades sequer compreendem a natureza dessas performances?
Na arte, não cabem temas moralizantes. Esses são demandados pelas instituições de manutenção do poder, como a família, a escola, a igreja, o Estado etc. O artista questiona, abala e refuta esses temas, com ética, jamais com a moral.
Para quem não sabe, há um abismo abissal entre ética e moral. A simples modo, essa diz dos valores humanos que habitam em cada um. Esta, os elementos que mantêm firmes as crenças.
Na arte, pode-se falar dos mais complexos temas. O suicídio, a pedofilia, o incesto. Todos, no entanto, devem ser tratados sem apologias, com compromisso ético para expô-los criticamente de forma a que o espectador possa sair transformado e crítico diante dessa percepção. Imagine se alguém assistir hoje à “Medeia” e acusar a produção de infanticídio? Ou “Édipo-rei” e aplicar um processo por desestabilizar a instituição família? Parece exagero, mas o que aconteceu em Brasília é tão surreal para o ano de 2017 que me obriga a esse didatismo.
Só em ditaduras militares e governos retrógrados as forças de controle avançam sobre artistas com intuito de enquadrá-los moralmente. Há algo de errado no entendimento da performance de Maikon K como indecente. Uma falta de percepção humanista da arte, sem dúvida. Como essa falha pode ser debatida entre governo, que pediu desculpas públicas, e aparato de segurança, que se equivocou?
É preciso ensinar aos jovens a apreciação do nu artístico na arte mundial sem o olhar deturpado. A pintura traz, de Michelangelo a Picasso, os corpos desnudos como percepção estética. Essa diferenciação é extremamente importante para se distinguir o erótico do pornográfico (base do aliciamento da pedofilia). Uma criança que entende essas nuances pode crescer apta a denunciar a silenciosa e mordaz ação de abuso sexual, crime que acontece na calada das casas, nas escolas e nas igrejas.
O nu de Maikon K, ao contrário, é libertador, dono de um sentido artístico que não pode ser posto num camburão. Infelizmente, em Brasília, foi abatido pela ignorância dos homens