Por que não dá mais para engolir a Bahia branca no horário nobre?
Na luta por representatividade, as vozes das redes sociais clamam por intérpretes negros no núcleo central da ficção
atualizado
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Estamos em tempo de representatividades. É preciso se atentar ao que esse termo poderoso aponta. Antes de que me acusem de politicamente correto, antecipo: representar significa se ver do outro lado de poder e do saber, identificar-se com seus traços físicos, as dores e histórias pessoais e territoriais.
É olhar e acreditar que, se àquele semelhante ocupou por mérito e talento um espaço caro, eu também posso me deslocar em sua direção
Representar, portanto, inspira sonhos, liberdades e justiças. É crer que não haverá mais acertos de bastidores para impedirem que este ou aquele indivíduo não possa ocupar uma situação de destaque pela sua cor da pele, sua orientação sexual e seu gênero estarem em “não conformidade” ao padrão dominante.
Por que Zezé Motta não é a Sofia ou a Nádia na novela “Do Outro Lado do Mundo”? Talento, aliás, não lhe falta
Na política do cotidiano, sabemos que talentosos profissionais não ocupam espaços de poder por serem negros, gays, lésbicas, trans, deficientes e até mulheres. Posso dizer isso com todas as letras. Mesmo sendo homem e branco, tive minha carreira de jornalista “congelada” numa conceituada empresa de comunicação por ser assumidamente gay.
Vi, por diversas vezes, minha ascensão profissional escorrer das minhas mãos por não representar o padrão masculino vigente. Talento e esforço, aliás, nunca me faltaram
Trazer esse fato à tona não pode ser reduzido ao vitimismo. É urgência para quebrar a ordem perversa e silenciosa dos gabinetes e de suas perniciosas reuniões de promoções.
Estamos num tempo em que todos os campos de poder e de saber movem-se para serem representativos, nos quais as vozes historicamente silenciadas tomaram as redes sociais e estão narrando suas próprias vidas.
É uma questão de ocupação física. É preciso ter corpos negros, gays, lésbicos, trans, femininos, deficientes em espaços e esferas ocupados pelo padrão dominante. Nos palcos, nos estúdios de televisão, nos sets de cinema, nos parlamentos, nos órgãos representativos, nas academias.
A mudança do Brasil de uma nação socialmente injusta para justa passa por essa capacidade de nos vermos em suas complexas camadas nessas esferas
Não se trata de “mimimi” quando uma população negra reclama de que a próxima novela das nove da Rede Globo, “Segundo Sol”, ambientada na Bahia, não tenha intérpretes afrodescendentes no núcleo protagonista. Aliás, a caracterização do protagonista Emílio Dantas é um neo black face? Fica a questão para o movimento negro discutir.
A Bahia musicalmente negra que inspira tantas ficções está cansada de ser embranquecida no horário nobre
Pouco importa o que a Bahia vai ou não lucrar com a visibilidade em ser mais uma vez estrela de uma novela das nove. O que está em jogo, neste 2018, são outras forças de poderes. Os negros carregam secularmente a Bahia mítica nas costas, com seus sons, suas religiões e inventividades, mas não suportam ainda serem surrupiados na hora em que se inspiram de suas vivências.
Foi assim com a própria axé music que se apropriou dos sons vindos dos guetos e recrutou um time de intérpretes brancos para contraírem milhões de reais para indústria do carnaval.
Basta olhar para o abismo entre as carreiras de Margareth Menezes e das cantoras brancas. Alguém em sã consciência dúvida do talento e da qualidade de voz de Margareth?
As questões de representatividade interessam a todos que querem um Brasil de chances democráticas universais. Corpos negros precisam estar em lugares de privilégios brancos, como as novelas.
Ah, para… A Rede Globo é uma empresa privada e faz o que bem quer? Sim e não. As vozes que clamam são e serão cada vez mais influenciadoras e capazes de mudar as regras desse jogo perverso e enfadonho.
Essas vozes gritam também neste momento pelo nome de Conceição Evaristo para ocupar a vaga deixada por Nelson Pereira dos Santos na Academia Brasileira de Letras (ABL).
Conceição Evaristo, 71 anos, hoje, viaja o mundo para falar de sua “escrevivências” (é assim que ela se refere às suas narrativas). Negra, viveu por anos na favela do Pendura a Saia, em Belo Horizonte.A escritora é um dos nomes mais respeitados na nossa literatura contemporânea. Nos seus relatos, há algo que só ela pode tecer: a sua história de mulher num Brasil ainda dominado pelo privilégio da elite branca e escravocrata.
Conceição Evaristo levou 20 anos para publicar o seu primeiro livro: ”Becos de Memórias”. Mandava para as editoras e se estabelecia, quando muito, um terrível silêncio. É evidente que não era à toa. Era estranho uma mulher negra apropriar-se de sua própria história.
A literatura brasileira, domínio quase absoluto de brancos letrados, nunca foi afeita à representatividades. Temos bem abaixo dos nossos narizes o esquecimento de escritores negros. Basta vasculhar a história de Maria Firmina dos Reis, autora de “Úrsula”, primeiro romance brasileiro, negra e soterrada nos escombros do tempo. Ou ainda Cruz e Souza, um dos maiores nomes da poesia simbolista, sempre restrito a apêndices nos livros de história.
Ter Conceição Evaristo como imortal é celebrar essa representatividade tão pungente. Mulher, negra, favelada e talentosíssima. Conceição Evaristo nos representa.
Talvez, tudo isso sirva para dizer por que não dá pra engolir mais uma vez a Bahia branca no horário nobre e isso não tem que ver com a possível qualidade que essa obra ficcional venha a ter