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Os contos de amor que Guimarães Rosa deixou para Brasília

Em “As Margens da Alegria” e “Os Cismos”, o autor mostra sua visão peculiar sobre a nascente capital

atualizado

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1 de 1 por - Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Há quase 50 anos, morria João Guimarães Rosa. O Brasil ficou em choque com a partida inesperada de um dos maiores escritores de língua portuguesa. Ele havia assumido uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL) três dias antes e anunciou, como em um presságio:

A gente morre é para provar que viveu

Guimarães Rosa

Ele morreu em 19 de novembro de 1967, sozinho em seu apartamento em Copacabana. Uma partida súbita, aos 59 anos, no auge da fama, quando o sobrenome Guimarães Rosa superou o João (previsão de um pai de santo que o acompanhava).

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Escritor, médico e diplomata, Guimarães Rosa tinha visitado Brasília em sua construção. Certa vez, escreveu:

Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão. E os trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece coisa de russos ou de norte-americanos. (…) Mas eu acordava cada manhã para assistir ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio, às 6h15, comer frutinhas, na copa da alta árvore pegada à casa, uma tucaneira, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das cenas mais bonitas e inesquecíveis de minha vida.

A passagem por Brasília nos deixou uma herança literária. O autor da obra-prima “Grande Sertão: Veredas” deixou impresso dois contos inspirados na experiência de ter ficado na cidade que se erguia no chão rachado da seca. Fazia o relato não com o ódio dos indignados que seriam transferidos à força do Rio de Janeiro para o Cerrado, tampouco com o descompromisso dos flaneurs que chegavam curiosos para entender a natureza da capital modernista.

Guimarães Rosa enxergou Brasília com os olhos de um Menino e foi atravessado pelas contradições da terra rasgada pela força da construção que transformava os canteiros de obras em palácios. Em “As Margens da Alegria” e “Os Cimos”, o autor coloca esse personagem diante de uma cidade a ser cidade.

A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapa-dão: a mágica monotonia, os diluídos ares

Guimarães Rosa

Nessa imensidão, onde passa dias numa casa de madeira, o Menino avista, em “As Margens da Alegria”, um peru imperial e se deslumbra. A ave não sai mais de sua memória e ele segue no cotidiano com o animal a ciscar imaginariamente os seus olhos.

O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão brusco, rijo se proclamara

Guimarães Rosa

O conto leva o leitor ao passeio lúdico pela cidade-canteiro-de-obras. De jipe, ele corta a estrada e a fauna e flora do cerrado explodem diante da narrativa que viaja pela “paisagem de muita largura, que o grande sol alagava”.

A poeira, alvissareira. A malva-do-campo, os lentiscos. O velame-branco, de pelúcia. A cobra-verde, atravessando a estrada. A arnica: em candelabros pálidos. A aparição angélica dos papagaios. As pitangas e seu pingar. O veado campeiro: o rabo branco. As flores em pompa arroxeadas da canela-de-ema. A tropa de seriemas, além, fugindo, em fila, índio-a-índio. O par de garças. O buriti, à beira do corguínho, onde, por um momento, atolaram. Todas as coisas, surgidas do opaco.

Esse paraíso que encanta o coração de Menino está em desarranjo com “os homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira”.

A morte bárbara do peru imperial parece anunciar a morte da primeira impressão, cheia de sonhos de Menino, que volta à cidade em “Os Cimos”, agora afetado pela doença da mãe.

E, com pouco, o menino espiava, da janelinha, as nuvens de branco esgarçamento, o veloz nada.
Entretempo, se atrasava numa saudade, fiel às coisas de lá. Do tucano e do amanhecer, mas também de tudo, naqueles dias tão piores: a casa, a gente, a mata, o jipe, a poeira, as ofegantes noites — o que se afinava, agora, no quase-azul de seu imaginar. A vida, mesmo, nunca parava

Era uma outra Brasília que se erguia mais angustiante aos olhos de Menino.

Leia os contos de Guimarães Rosa:

http://www.revistaprosaversoearte.com/as-margens-da-alegria-joao-guimaraes-rosa/

http://www.revistaprosaversoearte.com/os-cimos-joao-guimaraes-rosa/

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