O preconceito contra Anitta é de classe. Incomoda ela cantar a favela
Fenômeno mundial, cantora é aposta para se tornar a primeira estrela brasileira pop mundial. Sucesso desperta, em alguns, ódio injustificado
atualizado
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Estava na casa de um amigo em Salvador e ele, educadamente, ofereceu-nos o controle remoto da tevê para eu escolher a programação, enquanto dava banho nos cachorros. Não tivemos dúvidas. Selecionamos o canal YouTube e escolhemos o clipe “Vai Malandra”, de Anitta, para apreciá-lo numa tela de 48 polegadas.
Qual a nossa surpresa? Esse amigo do meu querido amigo descontrolou-se. Perdeu a estribeira. Disse que, na casa dele, ninguém ouviria essa mulher favelada, oportunista e desclassificada. Ficamos em estado de choque.
É natural que as pessoas possam não apreciar o trabalho de uma artista. O estranho é perceber o ódio inexplicável de alguns brasileiros em relação ao triunfo de Anitta, hoje, uma ascendente estrela da música internacional batizada de Anira. Aqui e ali, há uma tentativa de desqualificá-la quase gratuitamente. O sucesso de Anitta mexe com o imaginário de quem acreditava que ela não duraria cinco minutos.
Ao contrário, Anitta desenvolveu uma carreira planejada e ascendente. Em 2017, lançou 11 clipes vistos por 1,5 bilhão de pessoas. Esteve entre as 10 artistas mais ouvidas durante os 12 meses. Aprendeu línguas, estudou gestão de negócios e ergueu um trabalho que vai além de uma sucessão de hits. É impressionante a qualidade dos videoclipes do projeto Check-Mate. “Vai Malandra” é um primor, independentemente se gostem ou não gostem do conteúdo e do ritmo.
Anitta hoje está galgando um patamar que nenhuma estrela brasileira almejou nos últimos tempos. Pode vir a se tornar a nossa primeira estrela pop mundial. Assim como a Colômbia tem a Shakira, poderemos ter Anira, uma cantora cuja música vai tocar da Ásia à Oceania. Vai lotar arenas em qualquer capital do mundo, ditará tendências e mostrará a cara do Brasil. Por que não torcer para esse estrelato?
O preconceito à figura de Anitta está ligado ao de classe, não há dúvida. Imagina, uma “favelada” chegar ao topo mundial e ser reverenciada pelo mundo? É quase atingir as certezas de quem piamente pensa que o universo é erguido por suas verdades talhadas nos condomínios. Em outra proporção, as estrelas Ludmila, Valeska Popozuda e Pablo Vittar também sofrem essas discriminações diárias. Tentam desqualificá-las de alguma forma. Seja na voz, seja no estilo. É preciso silenciá-las.
Anitta representa o funk e o rap, base de sua estética sonora, estilos estigmatizados no Brasil. Preconceituosos não entendem a necessidade da favela dançar e cantar os gêneros. O que interessa é reduzi-los a uma “não música”. Em algum momento, o samba e outros ritmos vindos das periferias passaram por esse crivo mediano, baseado em uma velho combate entre música de arte e popular.
A favela precisa de representatividade para ser vista e entendida. E é empolgante ver uma brasileira que canta a favela invadir o mundo, mesmo que, em certa proporção, surja como um estereótipo
No século passado, em outro contexto histórico, Carmem Miranda fez esse papel. Mostrou o samba ao mundo. Surgiu a imagem do Brasil tropical, farto de frutas, animais, malandragens e batucadas. Sofreu todo tipo de retaliação. Disseram que estava americanizada. Os detratores passaram e ela ficou.