O passeio surpreendente pelos fios da memória de Renato Russo
Quase 20 anos depois da morte do cantor da Legião Urbana, remontar a sua história é um exercício surpreendente
atualizado
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O que você estava fazendo em 11 de outubro de 1996?
Eu me lembro muito bem.
Era uma sexta-feira, morava em Salvador, aos pés da Igreja do Bonfim, e vivia um momento especialíssimo: tinha trocado de profissão há pouquíssimo tempo. Havia deixado de ser industriário para trabalhar como jornalista no caderno de Cultura, do “Correio da Bahia”. Ah, estava apaixonado e não tirava do som o CD italiano de Renato Russo.
Naquela dia, seguia a rotina de ir ao trabalho. Peguei o carro e, ao ligar o som, tocava, na rádio, “Tempo Perdido”, da Legião Urbana. Passei a minha adolescência ouvindo a banda de Renato e sonhando como seria a sua vida punk em Brasília antes da fama.
Tinha um fascínio com a banda Aborto Elétrico, que não chegou a ter uma carreira nacional, mas se desdobrou em duas grandes vertentes do rock brasileiro: Capital Inicial e Legião Urbana.
Havia um ano que eu tinha ido a Brasília, no Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação da UnB. Nesse curto período em que passei na cidade, busquei histórias da Aborto Elétrico. Em 1995, a banda ainda estava na memória das pessoas e, a capital respirava rock. Fui num show da Cachorro das Cachorras e conheci alguns integrantes que viram, ao vivo, a legendária formação que tinha Renato Russo, Fê Lemos, Felipe Lemos, Ico Ouro Preto e André Pretorius.
Um dia difícil
Naquele 11 de outubro de 1996, lembro-me de dirigir cantarolando “Tempo Perdido”, quando a rádio, emendou, sem intervalos, “Ainda é Cedo” e “Pais e Filhos”. Um especial de Renato Russo, numa manhã de sexta-feira na terra onde o baticum da axé music dominava o dial, parecia ser um milagre divino.
Seguia cortando a cidade de Salvador, num caminho que, até uma certa parte, margeava a Baía de Todos os Santos, pensando sobre a luta de Renato Russo para vencer as complicações com a Aids. Já tínhamos perdido Cazuza e havia uma ferida aberta em minha geração. Estacionei o carro, entrei na redação e encontrei minha chefa, Isabela Larangeira (a melhor editora de Cultura com quem trabalhei) agitadíssima. Dramática, ela dizia balbuciando:
Renato Russo morreu! Corra para terminar o roteiro cultural. Vai ser um dia difícil
Isabela Larangeira
Acho que arregalei os olhos de susto. Não me lembro mais nada. Só de um vazio que se abriu ainda mais. Uma ferida deixada pela morte de Cazuza voltava a sangrar. Isabela tinha razão: foi um dia difícil.
Pouco tempo depois, vim morar em Brasília, cenário de Renato Russo. Nos primeiros meses, andei pelo Conic atrás de uma camiseta da Aborto Elétrico. Tempo perdido. Só achava estampas da Legião Urbana. Só cessei a busca no dia em que um vendedor roqueiro sentenciou:
Véi, Aborto Elétrico nunca fez sucesso de rádio. Só tem camiseta quem fez sucesso de rádio
Convivendo com jornalistas e artistas da cidade, fui colando peças e entendendo o movimento de Renato Russo na cidade. Não sabia que ele tinha sido professor de inglês, nem que fez teatro performático na 508 Sul (a peça “O Último Rango”, de J. Pingo). O tempo como O Trovador Solitário foi uma descoberta curiosa. Mas nada foi mais emocionante do que passar por locais onde a banda Aborto Elétrico tocou. A primeira vez que fui a Colina da UnB.
Semana passada, fiquei diante de uma foto da página oficial do “Aborto Elétrico” no Facebook (a imagem que abre esta coluna). Era a foto na escadaria da igreja Nossa Senhora das Dores, no Cruzeiro Velho. Nela, a banda Aborto Elétrico fazia um show em agosto de 1981, numa Semana Ecológica.
Fiquei estático. Morei na Quadra 3 do Cruzeiro Velho, vizinho a igreja, e nunca imaginei que aquele cenário tinha sido espaço para a banda Aborto Elétrico.
Quase 20 anos depois da morte de Renato Russo, ainda há muito o que colocar a memória em roda.
Em tempo:
Neste sábado (24/09), o escritor Carlos Marcelo lança, às 16h, na Livraria Cultura (Shopping Iguatemi), a segunda edição de “Renato Russo, o Filho da Revolução”. Nesse novo tomo, a biografia, essencial e densa, traz novidades: um capítulo inédito anterior ao epílogo, com maior volume de informações sobre o período de intensa produtividade que antecedeu a morte do cantor.
Nos últimos cinco anos, além de organizar a coletânea Música para acampamentos, Renato produziu material para seis discos inéditos: quatro com Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá para a Legião, dois projetos com o tecladista Carlos Trilha – ganha ênfase nestas páginas a reconstituição do processo criativo do vocalista à frente de sua banda e nos discos solo
Carlos Marcelo