O guia de turismo que nasceu com Brasília
Filho do pioneiro Gladson da Rocha, Lúcio Montiel mistura informações históricas e arquitetônicas com preciosas narrativas pessoais. Requisitado por estrangeiros e personalidades, como a atriz Deborah Evelyn, ele revela aos visitantes a cidade que o pai ajudou a construir
atualizado
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Lúcio Montiel é filho de um homem apaixonado que falava para grandes plateias sobre uma cidade que ainda não existia. Terceiro bebê a nascer no Hospital de Base, ele veio ao mundo um mês depois da inauguração da nova capital do Brasil. Foi nas superquadras que aprendeu a conhecê-la amiúde, como se fosse uma amiga de infância. Cresceram juntos, trocaram confidências, compartilharam pequenas felicidades e amargaram meia dúzia de tristezas. Hoje, os dois vivem um para o outro. Lúcio e Brasília, um caso de amor.
Sou filho do arquiteto Gladson da Rocha, que, em 1957, chegou a Brasília e integrou a equipe de Oscar Niemeyer. Cresci entre o grupo de criadores, artistas e intelectuais. Nas minhas memórias, habitam a convivência com Oscar, Lucio Costa, Rubem Valentim, Athos Bulcão, Burle Marx, Alfredo Ceschiatti, Cassiano Nunes, Vera Brant (escritora), e Yvonne Jean (jornalista)
Lúcio Montiel
O menino Lúcio ouviu muitas histórias. Tantas que, hoje, ele se tornou um exímio contador dessas narrativas. É um dos guias de turismo mais requisitados da cidade, sobretudo por estrangeiros que chegam aqui sedentos para saber detalhes da cidade-monumento – patrimônio da humanidade. Atende também a brasileiros exigentes, como a atriz Deborah Evelyn, que, no tour, desvendou as peculiaridades dos monumentos, na companhia do marido, o arquiteto alemão Detlev Schneider. O passeio ocorreu, em junho, num intervalo da peça “A Hora Amarela”.
Foi incrível conhecer Brasília com alguém que nos explicou detalhes tão importantes da construção da capital federal.
Deborah Evelyn
As minúcias de Lúcio Montiel brotam dessa mescla de memória e de estudos sobre Brasília. Formado em História pela UnB, ele confessa que até possui um roteiro prévio, mas tudo pode se transformar, a depender do grau de curiosidade do visitante. Para pequenos grupos (de duas a dez pessoas), o passeio proposto começa pelas superquadras 108/308 Sul, onde ele combina a visita à Igrejinha, de Oscar Niemeyer, com o modelo da Unidade de Vizinhança, de Lucio Costa. Se o grupo tiver tempo e disposição, o tour progride para uma expedição de até duas horas.
Brinquei muito por aqui. A gente escalava as pilastras da Igrejinha, comia as frutas no pé. Sei onde estão as goiabeiras e as mangueiras. Em tempo de colheita, levo os turistas para saboreá-las
Lúcio Montiel
A entrevista para o “Metrópoles” foi exatamente por ali, num banquinho entre o pomar e a Igrejinha. Testemunhamos, eu e Lúcio, a visita-relâmpago de um guia de turismo e um grupo de estrangeiros. O profissional fez uma rodinha, falou por, no máximo, dez minutos, e liberou os visitantes para fotografia, sem sequer se aproximar do monumento. Ético, o filho do arquiteto-galante evitou comentar o trabalho do colega. No entanto, deu uma palinha sobre uma das construções mais afetiva da cidade, erguida em 1957, três anos antes da inauguração.
Aqui, gosto desfazer um equívoco. Muita gente acredita que o formato da Igrejinha é inspirado num chapéu de freira. Na verdade, Niemeyer ficou impressionado com um toldo erguido para a missa inaugural da construção, que tinha três pilares com esse formato triangular. Ele, então, mudou o projeto. Esse desenho de coluna, aliás, agradou tanto que desembocou na construção dos palácios
Lúcio Montiel
Veja imagens raras da missa:
Plano Piloto ficou na prancheta
Essa é uma história ouvida ainda quando era menino e saía com o pai, Gladson, pelos canteiros de uma Brasília em obras. Lembra-se que visitou o barracão de arquitetos da Novacap, que ficava na Esplanada. Com o pai, aprendeu que Plano Piloto não existe como um território. Era só a designação genérica do projeto. Enfatiza que o lugar se chama Brasília. Antes de morrer, em 2007, o pai queria que todas as placas rodoviárias indicando “Plano Piloto” fossem substituídas por “Brasília”.
Capixaba, Gladson da Rocha Pimentel (1923-2007) apaixonou-se por Brasília antes de a cidade existir. O amor à primeira vista teve como cenário a Cidade do México, onde estudava arquitetura na suntuosa Universidad Nacional Autónoma, em 1956. Certo dia, avistou numa banca de revistas a edição de um jornal que trazia a manchete: “La Nueva Capital de Brasil”. Passou a reunir e estudar tudo sobre o projeto. Acabou tornando-se um palestrante, com apoio da Embaixada do Brasil, na América Latina. Em 1959, estava por aqui e tomou um susto ao descobrir que havia um deserto.
Havia pouca coisa construída. Aí encontrei o Oscar e ele me disse: ‘Vem pra cá que precisamos de ajuda’. Eu ainda retruquei: ‘Oscar, eu estou verde, verde’. A marca de arquiteto está no Setor Sul e o Setor Central do Gama, na Embaixada do Egito, na Embaixada do Mercado Comum Europeu, a Casa Redonda no Lago Sul. Uma obra, no entanto, foi ceifada pela expansão imobiliária: a Pirâmide da Companhia Energética de Brasília (CEB), na L2 Norte, erguida em 1974.
Gladson da Rocha Pimentel (em depoimento ao Arquivo Público)
“Em 2012, a CEB vendeu a sede e os novos donos destruíram tudo. Foi uma dor muito grande. A vida de meu pai girou em torno da defesa de Brasília e nada pudemos fazer”, diz Lucio.
Assista ao depoimento de Gladson da Rocha sobre a Pirâmide da CEB (filme “Brasília Secreta”)
Em tempo: Lúcio faz passeios de carro (até quatro pessoas), de ônibus (por agências), a pé e de bicicleta. Além da Igrejinha e adjacências, ele passa pelo Parque da Cidade, Eixo Monumental e Ponte JK. Realiza também tours alternativos a gosto do freguês, com um circular pelas cidades do DF. Informações: (61) 9109-2634.
Para saber mais
Gladson da Rocha é o autor do livro “Minha Opção por Brasília” (Thesaurus/1996). Quem sugeriu o título foi Lúcio. No livro, há fotos do menino curioso ao lado do pai.