O abuso de Morgan Freeman é eco do impune estupro de Maria Schneider
Toda vez em que um astro ou magnata de Hollywood são acusados de abuso sexual, ouço os gritos de Maria Schneider no filme “O Último Tango em Paris”, de 1972, um clássico do cinema mundial, hoje um filme maldito pelas condições reais que envolveram a cena de estupro, na qual a atriz de 19 anos […]
atualizado
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Toda vez em que um astro ou magnata de Hollywood são acusados de abuso sexual, ouço os gritos de Maria Schneider no filme “O Último Tango em Paris”, de 1972, um clássico do cinema mundial, hoje um filme maldito pelas condições reais que envolveram a cena de estupro, na qual a atriz de 19 anos foi submetida sem consentimento dos limites narrativos.
Num conluio entre o diretor Bernardo Bertolucci e o ator Marlon Brando, em nome de uma asquerosa autenticidade da cena de estupro, a jovem intérprete foi abusada diante das câmaras num cena de sexo anal. Não sabia, por exemplo, que o ator usaria uma barra de manteiga como lubrificante.Queria que reagisse humilhada. Acredito que odiou Marlon e a mim porque não contamos a ela
Bernardo Bertolucci
A cena chocou, à época, espectadores mais conservadores. Não houve penetração, mas ela estava exposta às armações do diretor e do ator no set de filmagem, acuada diante das câmeras. Algo feito sem seu consentimento, aproveitando-se de um misto de inocência e ignorância. Em entrevista, Maria revelou que as lágrimas foram reais.
Maria, não se preocupe, era só um filme
Marlon Brando
Não foi só um filme. Foi a pior experiência para uma jovem atriz, que a deixou maculada, com sérios problemas emocionais. Maria transformou-se em viciada em drogas e mergulhou em longos períodos de depressão. Passou anos atormentada por esse segredo. O silêncio era o amplificador de sua dor.
Quando decidiu contar, em 2007, não lhe deram crédito. A repercussão foi pífia. Pensavam assim: “Ah, uma mulher problemática acusando dois ícones do cinema mundial? Quem vai acreditar em suas palavras? Foi o segundo estupro de Maria, que morreu em 2011, vítima de câncer e de profunda tristeza.
“Deveria ter chamado meu agente ou fazer meu advogado vir ao set porque não se pode forçar alguém a fazer algo que não está no roteiro, mas, naquela época, eu não sabia disso. Senti-me humilhada e, para ser honesta, um pouco violentada por Marlon e Bertolucci. Pelo menos foi só uma tomada”, Maria Schneider.
Foi necessário que Bertolucci falasse para que o caso ganhasse credibilidade e repercussão mundial, em 2016. Aliás, o cineasta italiano não se arrependeu. Como não se arrependem os abusadores que usam relações de poder para fazer serialmente as suas vítimas nos mais diversos graus de assédio.
Para conseguir, algo é preciso ser completamente livre
Bernardo Bertolucci
Não se estabeleceram limites para a indústria cinematográfica mundial. Todos os últimos escândalos de abuso sexual revelados movem-se como uma sucessão de quebras de espaços que nunca foram confrontados. Não existe arte sem ética. Não se pode pensar nos fins, no caso, o lucro das bilheterias e os prêmios, sem zelar pelo processo de criação, como um ambiente de fruição de vidas humanas.
Morgan Freeman, que acaba de ser acusado por oito mulheres, é mais uma ressaca dessa maldita onda. Ele não pararia se o silêncio não fosse quebrado pelas 16 vozes (oito assediadas). Continuaria supostamente a falar barbaridades a companheiras dos sets de filmagem e a tocar em suas partes íntimas, usando o seu carisma de astro que construiu, com seu talento.
Morgan, aliás, para quem não se lembra, foi bastante deselegante quando veio ao Brasil, em abril de 2002, para participar do Festival Internacional de Cinema de Brasília. Aqui, foi recebido no gabinete da República e diante da demora do presidente Lula, colocou as mãos nos órgãos genitais em gesto obsceno e desprezo ao Brasil e aos brasileiros.
A representatividade para o intérprete negro, historicamente minimizada pela indústria, que Morgan Freeman ergueu não se arranha nesse episódio. O abuso sexual é falha de caráter, psicopatia ou reflexo da cultura do estupro. Nada que tenha a ver com a cor da pele. Qualquer relação entre uma coisa e outra é prática de racismo.
O tempo do abuso sexual acabou. Não há mais como se calar. Ou denúncia ou denúncia. Não há mais como baixar a cabeça de vergonha. Culpar-se profundamente e aprofundar as dores das almas. Aqui, no Brasil. Lá, em Hollywood. Ali, em Rondonópolis. O abusador precisa ser confrontado pelas vítimas e entregue à lei.
Precisamos falar sobre abuso sexual. Vidas como a de Maria Schneider valem muito e nos interessam. E esse é o mérito dos movimentos Time’s Up” (“O Tempo do Assédio Acabou) e “Me too” (Eu Também”).