Murilo Eckhardt pintou o teatro brasiliense de cores vivas
A série “Teatro 061” debruça-se sobre a trajetória de um rapaz que virou mestre e revolucionou a cena teatral do DF
atualizado
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Ator, diretor, dramaturgo, cenógrafo, figurinista e artista plástico. Antônio Murilo Eckhardt (1943 – 1998) era um Homem de teatro, com “H” maiúsculo. Um dos maiores que Brasília (e que o Brasil) já teve. Estava aqui desde a inauguração. Chegou aos 17 anos, ao lado da mãe, uma funcionária do Ministério da Justiça, que, tempos depois, foi transferida para a Câmara dos Deputados. Aqui, foi estudar no Elefante Branco, colégio modelo.
Podemos dizer que foi a testemunha número 1 de uma cidade em construção teatral. Foi ele quem relatou para a escritora Maria Duarte que, em julho de 1960, o primeiro grupo amador de teatro de Brasília formou-se no Elefante Branco, e apresentou a peça “A Revolução dos Brinquedos”, de Pernambuco de Oliveira e Pedro Veiga.
Braço do projeto genial de Paschoal Carlos Magno, o Teatro de Estudantes de Brasília (TEB), comandado pela diretora Maria José Braga Ribeiro, levou um público entusiasmado para apreciar uma montagem ensaiada na chamada capital da esperança.Envolvido com teatro e canto, Murilo conheceu Sylvia Orthof assim que ela chegou a Brasília, querendo sacudir a poeira vermelha. Foi fazer o antológico Teatro Candanguinho. Era famosa sua interpretação para a Bruxa Fedegosa. Em entrevista à pesquisadora Elizângela Carrijo, Iara Pietricovsky lembra-se como as crianças se encantavam com a entrada dessa personagem. Ela cantava:
Lindos dentes tão brilhantes, diamantes, lindos dentes, meus tão brilhantes, são como as noites de verão
Bruxa Fedegosa
Para depois, soar uma gargalhada que arrepiava os pequenos de medo.
Intenso e teatral até o fio do cabelo, Mumu, como era docemente chamado pelos inúmeros seguidores, atravessou quatro décadas do teatro brasiliense, tornando-se um mestre incontestável, que queria diluir barreiras entre o fazer teatral e as companhias. Para ele, teatro era uma coisa só: no Plano Piloto, nas cidades ou Brasil afora. Visionário, queria destituir as “panelas”.
Sinto que os grupos precisam interagir em suas criações. Não podem ficar isolados. Estamos vivendo essa nova fase (em 1979), de intensa colaboração
Murilo Eckhardt
A visão de Murilo Eckhardt era de ter uma experiência teatral intensa e sem rótulos. Foi um criador importantíssimo para quebrar a hegemonia do Plano Piloto, como centro de criação. Abraçava o teatro amador e os novos artistas e criava cenário, figurinos e adereços deslumbrantes.
Dar aula era difundir conhecimentos. Murilo não queria reter nada. Seu desejo era de expansão. Muito jovem, era instrutor no Instituto Villa-Lobos, no Rio. Amigo de Dulcina de Moraes, fez da Fundação Brasileira de Teatro seu universo para multiplicar conhecimentos. Tinha uma característica ímpar como diretor: torcia pelo ator em cena.
A gente experimentava algo no ensaio e ouvia aquele grito: “Vai, segue, é isso, continua, acredita”. Murilo jogava com o ator, colocava o intérprete para cima, numa zona de confiança. Nunca derrubava ninguém em cena
Jones de Abreu, ator
Ele fez espetáculos ousados que marcaram a sua curta história do teatro brasiliense. Em 1976, ao lado de Dimer Monteiro, encenou “Espelhos”, possivelmente, o primeiro espetáculo gay do DF. Foi um rebuliço. Era tempo de censura.
Em 1979, depois de comandar uma série de oficinas na Aliança Francesa, montou, com o grupo Reticências, “A invasão”, de Dias Gomes, no Teatro Galpão. Um acontecimento teatral.
A cenografia era o esqueleto de um prédio de três andares de madeira. As cenas aconteciam nessa suposta construção, em seus vãos e escadas. Os atores se deslocavam e alteravam a paisagem cênica com objetos e adereços. Não se tinha visto aquilo em Brasília. Era genial.
Murilo foi para Brasília o que Paulo Barros é hoje para o Rio nas Escolas de Sambas. Ele trazia figurinos e propostas de cenário que ninguém era capaz de propor. Ficávamos todos ansiosos pela hora de chegada desses materiais em cena
Jones de Abreu
Assistente de direção na peça “Aluga-se Vagas Para Moças de Fino Trato”, na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, em 1989, Jones lembra-se de um cenário de caixas de papelão que começava suspenso e terminava esmagando todo o espaço cênico.
Ficava atrás das coxias descendo lentamente os fios. Era incrível essa precisão de Murilo. Não importa se a montagem era de diplomação, para ser apresentada duas ou três sessões, ele simplesmente queria o melhor cenário. O melhor figurino
Jones de Abreu
Paula Passos estava nessa montagem. Era a sua diplomação em artes cênicas:
Murilo me ensinou a olhar para o teatro com o desejo de disciplina, organização, humildade, dedicação e querer. Um dia, ele olhou pra mim e disse: ‘Perua, vai fazer faculdade que é lá que você vai saber o que é ser atriz, orgulha-se Paula.
Na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, Mumu tinha o seu ateliê, chamado de poleiro. Dono de um senso de humor único, era teatral em suas expressões. Como era muito grande, qualquer gesto dele alargava-se no ar e ganhava os olhos admirados de discípulos.
Tinha denominações hilárias para a paleta de cores usada na confecção dos figurinos e do cenário. As preferidas: o vermelho-adultério, o rosa-pica e o amarelo-fralda.
Quando achava uma coisa estranha nos projetos, emplacava o bordão:
Que coisa é essa?
Mumu
Eram famosas ainda as frases:
No cu, Marilu… Nossa, ele é cuuuullltooo
Mumu
Às vezes, Murilo dizia pra gente: Hoje, estou com CI? CI? O que é isso, Mumu? Ciúme incrível
Paula Passos
Murilo ajudou Brasília a colocar a cara no Brasil com dignidade. Em 1979, concebeu cenário e figurino para a peça “Eles Não Usam Black Tie”, da Cia. Teatro Grutta. Espetáculo escolhido pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT) para representar o teatro brasiliense no Rio de Janeiro, São Paulo e Goiânia pelo projeto Mambembão. O trabalho de Mumu impressionava público e crítica.
Tive o prazer de ser dirigido por esse “Homem de Teatro” como ele gostava de ser chamado. “A farsa do “Mestre Pathelin” foi o último espetáculo que ele dirigiu, em 1996. Ele criou cenário, figurino e adereços. Mumu era uma enciclopédia do teatro brasileiro. Ficávamos ouvindo ele contar histórias como a de sua passagem pela Companhia de Eva Todor
Ricardo César, diretor
“Talvez, a memória do meu tio como artista não esteja bem preservada. Basta uma rápida busca no Google para ver que as citações são breves. Os pertences foram doados para amigos e família; o acervo de livros de teatro e arte foi entregue à Faculdade de Artes Dulcina de Morais. Mas Murilo permanece intacto nos corações daqueles que tiveram a alegria e o privilégio de com ele partilhar a vida. É absolutamente inesquecível. Volta e meia, aparece quando nos lembramos de sua forma de ver o mundo”, destaca a sobrinha Maria Lúcia de Macedo.
Murilo teve experiência no Centro Integrado de Artes, em Teresina, onde trabalhou entre 1972 e1977. Viu sua peça encenada no Ceará e no Rio (“Snirff”, em 1971). Como ator e figurinista, integrou o elenco de “Senhora na Boca do Lixo”, da obra de Jorge Andrade, encenada por Dulcina de Moraes e com Eva Todor no elenco.
Murilo foi o tio que sempre acolheu no abraço, no riso, nas mil brincadeiras, na criatividade infinita, nos segredos. Conviver com ele significou expandir a imaginação, experimentar, criar, ver novas nuances nas cores e formas do mundo. Com ele, afinamos o olhar para o humano, a visão crítica da arte e vivemos o amor na plenitude. Além de intensa trajetória como diretor, figurinista e cenógrafo no teatro, com algumas passagens como ator, foi um professor queridíssimo e um artista plástico maravilhoso. Desenhava com leveza e naturalidade e distribuía suas cores harmônicas entre os amigos e parentes. Jamais vendeu um quadro
Maria Lúcia de Macedo, sobrinha
Na próxima coluna do “Teatro 061”, vamos falar do Grupo Grutta, que surgiu em 1966 e seguiu em atividade por mais de uma década
FONTES:
Acervo do Correio Braziliense
“(A)bordar Memórias, Tecer Histórias: Fazeres Teatrais em Brasília 1970-1990”, dissertação de mestrado de Elizângela Carrijo
“A Paixão de Honestino”, de Betty Almeida
“Histórias do Teatro Brasiliense”, de Fernando Pinheiro Villar e Eliezer Faleiros de Carvalho
“Panorama do Teatro Brasiliense em 1968”, artigo de Carlos Mateus de Costa Castello Branco, publicado na revista “Intercâmbio”
“A Cidade Teatralizada”, de Celso Araújo
“Educação Pela Arte: o Caso Brasília”, de Maria Duarte de Souza
“Canteiro de Obras”, Notas Sobre o Teatro de Brasília, de Glauber Coradesqui