Há 50 anos, a ultradireita violentou “Roda Viva”, de Chico Buarque
Dirigida por José Celso Martinez Corrêa, peça foi atacada em São Paulo e Porto Alegre, até ser censurada. Há previsão de voltar aos palcos
atualizado
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Há histórias que precisam ser recontadas, mesmo quando estão entremeadas pelo sangue e pela dor. Chegamos aos 50 anos de 1968, aquele que o escritor Zuenir Ventura anunciou nunca ter acabado. O tempo sem sol imposto pela ditadura militar, a qual suprimiu as liberdades individuais e transformou o Brasil numa nação de mordaça.
Há muito do que se falar sobre as atrocidades de 1968. Nesta coluna, vamos mergulhar no episódio da invasão à peça “Roda Vida”, a primeira incursão de Chico Buarque na dramaturgia. Com direção de José Celso Martinez Corrêa, o espetáculo incendiou o palco paulistano ao colocar o elenco em confronto urgente com a plateia.A história em si poderia até ter tido uma encenação mais amena: um ídolo pop manipulado pela indústria cultural vê-se corrompido pelo preço da fama. Nas mãos de Zé Celso, quem vinha da fantástica experiência tropicalista de “O Rei da Vela”, ganhou ares de enfrentamento com o regime militar. Havia algumas cenas que chocaram a plateia mais conservadora.
Numa delas, o ator, com figurino de soldado, defecava num capacete. Em outra, o coro destruía enorme fígado bovino cru (numa alusão às atrocidades do golpe), e o sangue voava sobre os espectadores. Havia ainda uma sequência em que uma personagem em alegoria à Nossa Senhora rebolava de biquíni.
Você já matou o seu comunista hoje?
A pergunta era outra provocação permeando o que o crítico Anatol Rosenfeld classificou perversamente de “teatro agressivo”.
“Ira vomitando visões obscenas… A mera provocação, por si mesma, é sinal de impotência. É descarga gratuita e, sendo descarga, o que comunica ao público, chega a aliviá-lo no seu conformismo.”
Sem a dimensão histórica do espetáculo, a crítica teatral e parte da esquerda seguiram descompassadas e perdidas em suas observações, dando margem para o crescimento do ódio da direita mantenedora do golpe e cega de ódio. Nessa escuridão, o quase sempre iluminado Yan Michalski escreveu no Jornal do Brasil:
‘Roda Viva’ é um típico trabalho de um jovem estreante que procura com hesitação, insegurança e ingenuidade descobrir e dominar técnicas desconhecidas. Uma montagem convencional faria mais justiça a Chico Buarque
Seguiu dizendo que o fã-clube de Chico Buarque, o bom moço de “A Banda”, estava perdido diante do espetáculo. Tinha ainda um nefasto trabalho de bastidor para minar as relações amistosas de Chico e Zé Celso. Naquele momento, não havia o fortalecimento de “Roda Viva” como uma peça-manifesto pela liberdade. O olhar lançado era para o velho teatro de texto linear com figurinos e cenários de “bom gosto”.
A peça estreou em 15 janeiro de 1968, no Teatro Princesa Izabel, no Rio de Janeiro. Cumpriu uma temporada com Marieta Severo, Antônio Pedro, Heleno Prestes e Paulo César Pereio no elenco. Havia um coro de 12 integrantes. Entre o elenco revelado, estavam Zezé Motta, André Valli e Pedro Paulo Rangel.
Quando seguiu para São Paulo, no Teatro Galpão (de Ruth Escobar), em julho, “Roda Viva” estreou num campo minado pelo crescimento de grupos paramilitares de ultradireita. O pior deles: o Comando de Caça aos Comunistas (CCC).
Sob ataques da esquerda e da direita, virou presa do terrorismo. Em 18 de julho, 20 homens encapuzados invadiram a sala de espetáculos. Armados de cassetetes, destruíram tudo: do cenário ao figurino. Espancaram os atores e atrizes, com relato de atos de violência sexual contra as mulheres. André Valli e Marília Pêra (que substituiu Marieta Severo em São Paulo) estavam entre os agredidos. No tumulto, os atores capturaram um dos agressores.
O episódio foi ápice da violência às artes cênicas no Brasil. A classe do teatro se mobilizou, exigindo providências. Cacilda Becker e Ruth Escobar comandaram os protestos.
“Queremos garantias de que esses elementos serão punidos e garantias de vida. Garantias de que o elemento que foi detido e que se encontra na 4ª Delegacia seja autuado em flagrante. Queremos informar o governador da maneira descortês das autoridades do Dops que se recusaram a nos atender. E, finalmente, queremos que o Estado se responsabilize pelos danos causados ao teatro.”
Mas a polícia da ditadura tratou de liberar suspeitos e escamotear as investigações. “Roda Viva” seguiu em setembro, heroicamente, para o Teatro Leopoldina, em Porto Alegre, onde sofreu um novo brutal ataque, com atores espancados e sequestrados. A peça teve, assim, a carreira enterrada pela censura, que a considerou “degradante” e “subversiva”.
O senhor Chico Buarque criou uma peça que não respeita a formação moral do espectador, ferindo de modo contundente todos os princípios de ensinamento de moral e de religião herdados de nossos antepassados
Mario F. Russomano, censor
Em dezembro de 1968, seria editado o AI-5 (o golpe dentro do golpe). A música-tema de “Roda Viva” atravessou os tempos, sendo regravada em diversos momentos da MPB. Mas a peça, desde então, nunca foi remontada profissionalmente. Recentemente, Chico Buarque deu o sinal verde para Zé Celso trazê-la de volta ao palco.
Como diria Chico Buarque, o episódio de “Roda Viva” é mais uma “página infeliz da nossa história”. Um episódio triste que nunca mais possa ser repetido.