Ferreira Gullar, o dramaturgo que enfrentou a ditadura militar
Poeta destacou-se nos anos 1960 com dramaturgia combativa em teatro político inspirado em Bertolt Brecht
atualizado
Compartilhar notícia
Se corres, bicho te pega, amô. Se ficas, ele te come. Ai, que bicho será esse, amô? Que tem braço e pé de homem? Com a mão direita ele rouba, amô, e com a esquerda ele entrega; Janeiro te dá trabalho, amô, dezembro te desemprega; De dia ele grita ‘avante”, amô, de noite ele diz: “não vá”! Será esse bicho um homem, amô, ou muitos homens será?
Os versos de Ferreira Gullar abrem um dos clássicos do teatro político brasileiro. Montado pelo Grupo Opinião, “Se Corre o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come” (1966) expõe a face dramatúrgica do poeta que o coloca no lugar privilegiado da história do teatro político brasileiro.
Se você faz teatro, é antes de mais nada que o teatro seja bom, que a peça seja bom teatro, se você faz poesia, que a poesia seja boa poesia e depois ela é política ou não. A partir do Opinião, nós não fizemos mais o tipo de teatro meramente ideológico ou propagandístico, passamos a fazer teatro político, mas de qualidade
Ferreira Gullar
Ao lado de Oduvaldo Vianna Filho, Vianinha (“Se Corre o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come”) e de Dias Gomes (“Dr. Getúlio, Sua Vida e Sua Glória”), ajudou a pôr o teatro no front de guerra. Era um teatro de qualidade que jogava o Grupo Opinião num campo de criação riquíssimo.
No Jornal do Brasil, o crítico Ian Michalski, uma dos grandes nomes do teatro brasileiro, destacava a mistura de “romance de aventuras, literatura de cordel, sátira de costumes, sátira política, farsa rasgada, commedia dell’arte, comédia à La Feydeau, comédia de nonsense, musical, comédia poética”.
Depois de dois grandes sucessos, como Opinião e Liberdade, liberdade – sucessos respeitáveis e perfeitamente válidos em função do momento nacional, mas essencialmente circunstanciais e sem maior abertura de horizontes do ponto de vista teatral –, o Grupo Opinião realiza agora a sua primeira tentativa de teatro, digamos, artístico, e alcança, logo nessa primeira tentativa, uma surpreendente e agradabilíssima teatralidade
Ian Michalski
O crítico João Apolinário também festejou a montagem:
Não me peçam que seja inteligente. Muito menos em cinquenta linhas. Menos ainda perante o fascinante espetáculo que vi de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar. Será pela emoção que chegarei à síntese que exigem do crítico. Uma emoção profunda, poética, quase eufórica. Direi: a comoção que a ‘inteligência’ não deforma, mesmo que seja ainda crítica, porque a arte autêntica, pura, límpida, rebenta todas as comportas e é na emoção que se fixa para sempre
João Apolinário
A peça dirigida por Gianni Rato, ganhou o Prêmio Saci (São Paulo) e Molière (Rio) e tinha elenco espetacular: Agildo Ribeiro, Cleyde Yáconis, Antonio Pitanga, Francisco Milani, Hugo Carvana, Jaime Costa, Jofre Soares, Manuel Pêra, Marília Pêra, Ilva Niño, Marieta Severa, Vianinha, Odete Lara, Thelma Reston, Sergio Mamberti e Oswaldo Loureiro.
Escrita em forma de poetas de cordel, “Se Correr o Bicho Pega…” trazia a discussão do homem brasileiro, Roque, dentro do sistema político vigente, a partir de uma visão politizadora proposta por Brecht, com músicas permeando as narrativas. O texto era escrito em prosa por Vianinha e Gullar transformava em versos. É um enfrentamento poético e teatral contra um tempo de “guerra” e “sem sol”.
O “Bicho…” é também um voto de confiança no povo brasileiro porque procura suas forças nas nossas tradições, porque utiliza os versos, as imagens, o sarcasmo, a desilusão, a ingenuidade e a feroz vitalidade que a literatura popular, durante dezenas de anos, vem criando
Ferreira Gullar
Teatro de Ferreira Gullar
“Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come”, com Oduvaldo Vianna Filho. Civilização Brasileira, 1966.
“A saída? Onde Fica a Saída?”, com Antônio Carlos da Fontoura e Armando Costa, coleção Espetáculo. Grupo Opinião, 1967.
“Dr. Getúlio, sua vida e sua glória”, com Dias Gomes. Civilização Brasileira, 1968. Reeditado com novo título: Vargas, o dr. Getúlio, sua vida e sua glória. Civilização Brasileira, 1983.
“Um Rubi no Umbigo”. Civilização Brasileira, 1978.