Em guerra eleitoral, fãs arrancam voto de Anitta de dentro do armário
Com carreira sustentada em plataforma de representatividades, cantora não tem como ser isenta diante de público acuado por projeto político
atualizado
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Está difícil caminhar em cima do muro brasileiro. As eleições 2018 se tornaram um infértil campo de guerra, no qual ideias e debates são abatidos facilmente pela paixão. O ódio, o medo e a insegurança abalam eleitores posicionados em lados opostos, como num campo de futebol. No meio desse tiroteio, nem todos podem se equilibrar entre o silêncio e o zelo com a vida pessoal. Se o indivíduo for público e empenhado ideologicamente com temas sociais e humanos do aqui e agora, o alvo seria certeiro e a queda poderia ser fatal.
Foi assim com a estrela Anitta que, nos últimos dias, viu a sua planejada carreira empresarial ser atravessada por uma rajada enfurecida. Talhada para ser símbolo feminino e feminista de um mercado musical que flerta com valores contemporâneos (a liberdade do ser humano, o convívio com a diversidade e o poder das periferias), a cantora deixou de ser uma “revelação da estação” para se tornar uma artista de carreira internacional, impulsionada por público que se identifica com essa plataforma de ideias.
Quem consome a música de Anitta e dessa nova geração de ídolos pops brasileiros (Ludmilla, Jojo Todynho, Pabllo Vittar, Iza, Johnny Hooker, Nego do Borel) alimenta-se não só dos ritmos urbanos contagiantes e das letras libertárias, mas, sobretudo, do que esses corpos midiáticos representam numa sociedade que ainda impõe limites conservadores ao cotidiano de mulheres, gays, lésbicas, transexuais, negros, periféricos, gordos e toda sorte de humanos que habitam forçosamente as bordas do poder.
Não são simples artistas em carreira solo. São astros atrelados a um conceito de representatividade e sustentado por um mercado que necessita consumir a imagem refletida em seu espelho
Anitta calou-se quando as redes sociais lançaram uma campanha de proporção mundial denominada #EleNão e #EleNunca. Grupos liderados por mulheres, negros e LGBTQI+ protagonizaram a campanha, enquanto Anitta permaneceu calada diante do programa político de Jair Bolsonaro. O silêncio e a possibilidade de convívio pacífico com eleitores do candidato algoz de seu público incendiaram as redes sociais.
Anitta é impulsionada em seus vídeos no YouTube (estratégia internacional) e em shows mundo afora a partir desse aval. O chamado “pink money” (dinheiro injetado pela população LGBTQI+), por exemplo, irriga e transforma essas carreiras em férteis plataformas ideológicas. Não se pode cobrar de Claudia Leitte, uma artista atrelada a valores conservadores de família, a mesma fatura que chega agora às mãos de Anitta.
Como investidor, o público LGBTQI+ colhe em sua postura ideológica os bônus acionários de poderoso valor simbólico. Se há uma quebra desse acordo tácito, desfaz-se o negócio. É como se Anitta despencasse na bolsa de valores. As ações amanheceram em queda vertiginosa
Num momento em que esse público grita por socorro diante da ascensão de um candidato à presidência que tem como principal alvo político as conquistas históricas da comunidade LGBTQI+, Anitta, com sua visibilidade mundial, precisa transformar o alerta em bandeira. Fez o contrário. Apelou para o voto secreto e o direito individual do voto, que não estão mais sob seu controle. Foram pactuados. Ficaram para trás quando a jovem e desconhecida Larissa se transformou na poderosa Anitta.
Não se trata de patrulhamento político como ocorreu em eleições passadas. A estratégia é outra. Estão em jogo as redes de afetos. Mulheres se associam a mulheres; LGBTQI+ buscam seus iguais; negros se unem a negros; o povo dos terreiros se abraça
Assim, forma-se a comunidade de milhões nas redes sociais contra o que parece ser a ameaça maior a liberdade e existência social desses grupos. Quem não tem afinidade com essas representatividades é escanteado
Não precisava ser desse jeito. É verdade. Mas não temos maturidade para atravessar uma eleição presidencial sem a loucura das torcidas. Sem transformar candidatos em mitos. Sem acreditar que há um campo possível entre os polos. A disputa é por narrativas e suas velhas dicotomias. A família tradicional versus as novas famílias; o vermelho versus o verde-amarelo; as armas versus os direitos humanos; o capital versus o bem social; o fake news versus o conhecimento, um única crença versus a liberdade religiosa. E as combalidas direta e esquerda.
Como uma pessoa que brinca distraída com borboletas em cima do muro, Anitta tomou um tombo, saiu ferida e foi obrigada a se posicionar. Ainda vai levar um tempo para correr com a mesma destreza. Quebraram-se algumas teias de afetos. Nos resta transformar o episódio em debate de ideias. Quem sabe em 2022 o Brasil possa estar em outro nível de discussão.