E se Marília Mendonça fosse a nossa Adele…

Estava em Salvador comendo um acarajé quando um amigo intelectual começou a cantarolar a música “Infiel”, que tocava no som de um carro estacionado. Fiquei a observar a desenvoltura dele com a letra quando subitamente ele interrompeu o momento-solo e disse.

Marília Mendonça, conhece? É a nossa Adele!

Na hora, arregalei os olhos e decidi apenas continuar devorando o quitute apimentado. Voltei para Brasília com essa observação na cabeça e passei os últimos dias ouvindo Marília Mendonça, que conhecia muito pouco. Um ou outro hit ouvido por descuido.

Dona de vozeirão grave, a cantora goiana de 20 anos inspira-se em fatos vivenciados por ela e seu entorno de amigos e parentes para compor. Diz que tira da dor a inspiração para criar. Vi que na internet é comparada a Pablo, sendo chamada de “Rainha da Sofrência”. Acho injusto. Por que sempre que uma mulher faz sucesso precisamos achar um equivalente masculino?

De pronto, é possível constatar que Marília Mendonça não vai passar com a onda feminina sertaneja que a indústria fonográfica brasileira acabar de levantar. A cada semana, novas garotas lindas, afinadas e talentosas estão sendo recrutadas para engrossar essa fileira ao lado de Maíara & Maraísa, Simone & Simaria, Paula Mattos e Naiara Azevedo. Em comum, elas se colocam como protagonistas de suas histórias de amor, encontros e desilusões.

Com Marília, não é diferente. O que se sobressai é a consonância entre voz, interpretação, letras mais interessantes e uma qualidade do show. Ela compõe desde os 12 anos, cantava em igrejas de Cristianópolis (GO), aprendia violão e escrevia as letras nos caderninhos a partir dos namoricos. Talvez, por conta disso, as letras saíam das rimas fáceis para temas mais confessionais como em “Hoje Somos Só Metade”.

Não nos conhecemos mais
Não vejo mais em você a pessoa que eu amei demais
O que tava dando certo agora deu errado
Não é que eu queira reviver nosso passado
A gente falava de amor
Que pena que a nossa voz já se calou

Feminina (para algumas, feminista), Marília Mendonça canta de mulher para mulher, com humor. “Folgado” é um hino da mulher livre que faz o quer e não está presa a reboque de namorados.

Não venha não
Eu vivo do jeito que eu quero
Não pedi opinião
Você chegou agora e, tá querendo mandar em mim
Da minha vida cuido eu
Deitou na minha cama
E quer dormir com o travesseiro
Folgado”

Cantando no banquinho com ou sem violão, ou remexendo no palco, com roupas sensuais, acompanhada de piano, percussão e músicos de primeira, Marília Mendonça esbanja o bem-estar com o corpo de quilinhos acima do estabelecido pela máquina de emagrecer. Embala assim as melodias de quatro acordes do sertanejo com a pegada show-woman. Está, portanto, acima do modismo.

Dificilmente, será uma cantora de um CD só. Se mesclar estilos, flertar com o pop romântico, explodirá em outros nichos. “Silêncio” é capaz de agradar àqueles ouvidos mais preconceituosos.

Se você chorar em silêncio
Como vou saber
Que sente minha falta?
Ouvi dizer que cansou de bancar o forte
Sua bússola aponta pro norte do nosso amor
Nossas promessas, não me interessam
Foi a última coisa que ouvi você falar
Pediu pra não te procurar
Pra sumir da sua vida..
Tô sabendo
Que não para de chorar
Que pediu pro vento soprar
Meu perfume da sua cama

É evidente que musicalmente há um abismo entre o estilo musical de Marília Mendonça e Adele. Mas há semelhanças, sim. As duas, donas de vozes que atravessam as paredes, cantam com o coração doído. Acho que meu amigo intelectual pode até estar exagerando. Mas de um jeito ou do outro Marília Mendonça tem um quê de Adele.Vida longa as duas.