10 motivos para defender o patrimônio de Dulcina de Moraes
Mais uma vez a obra da primeira-dama do teatro no século 20 corre risco e precisa do apoio popular para ser preservada
atualizado
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Estamos assistindo mais uma crise sobre a obra de Dulcina de Moraes. A Fundação Brasileira de Teatro (FBT) corre riscos. É preciso que Brasília abrace a obra de Dulcina de Moraes, como Dulcina abraçou Brasília, trocando o badalado Rio de Janeiro por uma capital federal ainda incipiente. Essa mudança lhe rendeu um apelido pejorativo: “A Louca de Brasília”.
Se alguém tem dúvida sobre a importância de defendê-la, seguem 10 bons motivos para gritar aos ventos “Salve, Dulcina!”
1. A personalidade do século XX:
Certa vez, numa entrevista, perguntaram a Fernanda Montenegro, hoje a maior expressão da arte de interpretação no Brasil, se ela seria a maior personalidade do teatro brasileiro no século 20. Desconsertada, Fernanda riu. “De jeito algum. A personalidade do século 20 sempre foi e sempre será Dulcina de Moraes”. Fernanda estava coberta de razão. Dulcina desenhou uma carreira majestosa de atriz nos palcos, sagrou-se diretora e gestora da Cia. Dulcina e Odilon, fez sucesso internacional, trouxe novos autores ao Brasil (Garcia Lorca é um deles), revelou talentos e abriu a primeira instituição de nível superior dedicada ao teatro.
Nasci no teatro, para o teatro, do teatro e me sinto felicíssima
Dulcina
2. O mito:
Algumas gerações de artistas foram afetadas pela forma singular pela interpretação de Dulcina de Moraes, dentro e fora do palco. Ela era a rainha do chamado tempo de comédia, a piada ou o pequeno gesto colocados matematicamente na cena. Jovens atrizes, como Marília Pêra e Bibi Ferreira, publicamente confessaram ser Dulcina a mestra das mestras. A teatralidade de Dulcina era única. A gargalhada singular, o perfume, a batida dos saltos altos, a elegância ao pisar no palco. Uma atriz que adorava compor tipos: as loucas eram preferidas. Tinha um senso de humor incomum. Diziam que, quando ela assistia a uma peça com intérpretes incipientes, comentava:
Esse espetáculo com atores de verdades ficaria ma-ra-vi-lho-so!
Dulcina
3 – O repertório:
Um artista constrói a sua carreira com um repertório. Dulcina preservava esse momento como sagrado. Escolhia peças que poderiam lhe render possibilidades de interpretação únicas. Era sempre uma atriz em busca de personagens. Para ela, o trabalho do autor era fundamental. Era fã incondicional de uma boa dramaturgia. Foi a primeira atriz a encenar, em português, Garcia Lorca (“Bodas de Sangue”, em 1944). Fez “Cesar e Cleópatra”, de Bernard Show, e “Chuva”, de Somerset Maugham, que a consagrou internacionalmente. Experimentou ainda Ariano Suassuna (“O Auto da Compadecida”) e Brecht (“A Ópera dos Três Vinténs”), ambos em seus momentos iniciais no Brasil.
O autor me entrega a personagem e eu serei uma louca sensacional
Dulcina
4. A Fundação Brasileira de Teatro:
Dulcina de Moraes lançou as premissas do ensino superior em teatro com a Fundação Brasileira de Teatro (FBT), em 1955, que antecede à criação dos primeiros cursos de teatro no ensino federal. Como profissional, ela vinha pressionada e inquieta com a modernização do teatro brasileiro. Viu o seu ofício de atriz ser colocado em xeque pelos vícios e a forma de se fazer um teatro dado por antigo, sem processo de ensaios. Gozava, no entanto, de prestígio enorme e não queria se desgastar no palco, como ocorreu com Procópio Ferreira. Soube então sair de cena para entrar para a história. Quando abriu a instituição, levou para as sala de aulas os nomes da modernidade: Ziembinski (o diretor-iluminador de “Vestido de Noiva”), Cacilda Becker (a estrela do Teatro Brasileiro de Comédia/TBC) e madame Henriette Morineau (a diretora cheia de métodos para preparar atores) estavam entre os professores. No meio acadêmico, revelou ainda novos autores brasileiros: Ariano Suassuna, um deles.
É doloroso constatar que, no Brasil, a cultura precisa de esmolas
Dulcina
5 – Geração de atores:
Dulcina de Moraes nasceu numa família teatral. Os pais, Átila e Conchita de Moraes, eram respeitados atores. Em sua trupe, sempre surgiram novos talentos. Funcionava como um celeiro de intérpretes formados na lida de trabalho, num tempo em que se fazia teatro de segunda a segunda e apresentava-se até 17 peças numa semana. Nas coxias da família de Dulcina, surgiram Bibi Ferreira, Nicete Bruno e Marília Pêra, meninas levadas pelos pais para assistir aos ensaios. Quando Dulcina criou a Fundação Brasileira de Teatro (FBT), em 1955, essa vocação de tutora ficou mais evidente. Surgiram ali Rubens Corrêa, Sueli Franco e Ivan Albuquerque. Em Brasília, grandes nomes passaram pelas salas de Dulcina de Moraes: Guilherme Reis (atual secretário de Cultura), Françoise Forton, Anastácia Custódio, Túllio Guimarães, André Amaro, Jones de Abreu, Luciana Martuchelli, Gelly Saigg e os irmãos Guimarães foram alguns deles.
Do centro do Brasil, teremos um celeiro de talentos
Dulcina
6 – Transferência para capital:
Dulcina de Moraes estava com patrimônio consolidado no Rio de Janeiro quando veio visitar Brasília em comemoração ao terceiro aniversário da cidade. Trouxe “Oito Mulheres”, com um elenco de estrelas, entre elas, as damas Nathalia Timberg, Maria Fernanda, Sueli Franco, Iracema de Alencar, Maria Sampaio e Margarida Del Rei. Ficou apaixonada pela cidade, vendeu o que tinha e decidiu vir pra cá em 1972, erguendo um patrimônio que durou quase uma década para ser inaugurado. A construção demorada consumiu tempo e dinheiro. Dulcina morreu triste, pobre, sem memória, morando num apartamento funcional, onde recebeu uma desonra: a ordem de despejo do então presidente Fernando Collor.
Não sou uma mulher de desistir. Desistir nunca
Dulcina
7 – Patrimônio imaterial:
O Prédio da Fundação Brasileira de Teatro (FBT), historicamente cobiçado por empreiteiras, é patrimônio da capital federal. O teatro tem o traço de Oscar Niemeyer e, apesar de degradado, é um dos melhores do DF. Ali, nas paredes e corredores, contam-se a história dessa mulher desbravadora que dormia e acordava pensando no teatro.
Desde que troquei o Rio por aqui, me chamam de Dulcina, a louca de Brasília
Dulcina
8 – Acervo histórico:
Existe um acervo de Dulcina de Moraes de valor incalculável em salas da FBT, que, em qualquer país civilizado e zeloso de sua memória, estaria em exposição ao público. São figurinos, peças de cenário, correspondências, documentos e bens pessoais. Tem o bastão de Moliére, de bronze, em que Dulcina dava as três batidas antes das cerimônias mais importantes, como o teste de aptidão. Ao melhor formando, era dado o direito de encabeçar o ritual. Rubens Corrêa foi um dos que tiveram a honraria de bater o bastão no solo sagrado de Dulcina.
Teatro é meu oxigênio
Dulcina
9 – Quase um século de teatro:
Dulcina começou a carreira profissional ao lado de Leopoldo Fróes, um dos maiores atores brasileiros de todos os tempos. Nas coxias, vivenciou o teatro com atrizes estupendas como Iracema de Alencar, Belmira de Almeida, Apolônia Pinto e Lucilia Peres. Integrou companhias de grandes empreendores como Viriato Correia, Oduvaldo Viana e Niccolino Viggiani. É possível contar a história do teatro brasileiro a partir de sua biografia. O respeito à sua memória é, portanto, uma reverência ao teatro nacional.
O mundo está medíocre
Dulcina
10 – Modernização dos métodos de trabalho:
Atenta às mudanças que aportavam no Brasil nos anos pós-guerra, Dulcina de Moraes aboliu o Ponto em sua companhia. O Ponto era aquele profissional que ficava dentro de um alçapão no palco a soprar o texto às estrelas. Também alterou a rotina trabalhista ao designar a segunda-feira como folga para o intérprete. Trabalhou politicamente para se fortalecer uma ideia de classe entre os artistas.
É preciso desenvolver, se já tivermos, ou criar, se não conhecemos, a ética profissional dentro do teatro
Dulcina