Conservador que nada! Ney Matogrosso é sinônimo de livre expressão
Um dos artistas mais coerentes e atuais do país, escreveu no corpo uma história de coragem que não envelheceu
atualizado
Compartilhar notícia
Não existe uma palavra mais sublime do que “humano”. Ser humano está duplamente relacionado à racionalidade e ao dom de ser tolerante. Na história, o homem perdeu, inúmeras vezes, esses atributos. Brutalizou-se em guerras e segregações. É tão grandioso pronunciar a palavra. Saímos do campo da onipotência e nos conjugamos frágeis, mortais e falíveis.
Não entendo como um artista possa ser crucificado por ampliar esse conceito. O que há de conservador em se desagregar de um universo identificado para se ampliar? Nos últimos dias, estamos assistindo Ney Matogrosso ser jogado na arena virtual por ter anunciado ser mais humano do que gay. A frase: “Gay é o caralho. Sou humano”, dita em uma entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo”, caiu como uma afronta para parte da militância LGBT.Ney Matogrosso não é um artista que vive de passado. Ele se alimenta de tudo que construiu. É um dos maiores intérpretes do país. Inquieto com sua trajetória artística, sempre busca se reinventar respeitando sua história. Atravessou décadas sem altos e baixos, buscando se expressar como um corpo vivo para a arte.
Não é preciso voltar à sua epifania sexual e andrógina dos anos 1970 para defendê-lo. O corpo dele aos quase 76 anos é um livro atualíssimo. Ele jamais parou de escrever a sua revolução. Se hoje é possível pensar numa cena musical gay na MPB, é preciso ambientá-la nessa raiz, da qual o artista está em uma das pontas.
Humanos, como Ney Matogrosso, Rogéria, Divina Valéria, Jane de Castro e Maria Alcina, levantaram um discurso potente no corpo. Uma revolução libertária numa época em que falar não era o canal possível. O mais audacioso era se expor, mesmo que apanhar fosse a consequência mais imediata.
Cobrar que esses artistas subam no palanque necessário e urgente do século 21 é anacrônico. É olhar para trás sem situar o aqui e o agora. O movimento LGBTIQ é suficientemente inteligente para perceber que a definição, politicamente necessária, não pode ser camisa de força para os corpos sensíveis.
Ney Matogrosso não cabe em rótulos, e isso não é uma observação de quem olha pelo retrovisor. Ele está no campo de extrema liberdade e essa conquista é resultado de uma ousadia plena. O que o artista promoveu na cabeça da audiência brasileira não é possível pôr num simples texto. Mexeu em fronteiras sexuais, libertou correntes, demoliu conceitos e atingiu uma dimensão que não cabe nessas três letrinhas importadas: “gay”.
Ney é explosivo, implosivo. Seu corpo imaginário se partiu em mil pedaços. Está em todos nós: gays, heterossexuais, bissexuais, pansexuais, assexuais, transexuais. Há uma energia de Ney Matogrosso em toda forma de ser livre. Ele se tornou sinônimo de ser humano livre, absolutamente livre, de pensar sem patrulhamento.
Aliás, patrulhamento é o caralho, somos todos humanos em estado de livre expressão.