Com quase 95 anos, Tônia Carrero é um dos baluartes da arte nacional
Agosto é mês de celebrar mais um ano de vida de uma artista que encantou plateias durante décadas no teatro, cinema e tevê
atualizado
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Nesta semana, recebi, novamente, a falsa notícia da morte de Tônia Carrero. Mais uma vez, de forma inexplicável, tentam espalhar esses boatos infames. No Brasil, se não bastasse esquecimento aos mortos, querem encurtar a vida de quem segue o cotidiano com dignidade. Volta e meia, tentam enterrar idosos, num recado de que envelhecer é um descarte para um país com “complexo de Peter Pan”.
O Brasil, aliás, não sabe fechar as contas de gratidão com seus artistas, tem uma dificuldade abissal em manter a memória nacional em circulação. Não se aprende sobre a nossa cultura nas escolas. Há também um descuido com os acervos. Não temos museus e casas para visitação dos ícones.
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Prestes a completar 95 anos de vida no próximo 23 de agosto, Tônia Carrero segue a vida cercada pelo carinho da família. Enfrenta com dignidade complicações causadas por hidrocefalia. Em qualquer país com respeito à cultura e à educação, ter uma atriz desse quilate viva é um motivo de orgulho e celebração.
De símbolo de beleza inconteste à atriz de capacidade cênica ilimitada, ela se tornou uma artista capaz de conduzir a carreira de um jeito próprio Não cedeu à pressão da televisão. Só aceitou fazer novela quando desejou. Dedicou a maior parte do tempo ao teatro, território em que colecionou momentos inesquecíveis como a primeira montagem de “Navalha na Carne”, em 1967.
Há 50 anos, Tônia Carrero parava o país e mudava a sua trajetória artística. Faria o que era considerado impossível. Tornava-se feia para viver a prostituta Neusa Suely, em “Navalha na Carne” — texto marco da dramaturgia de Plínio Marcos. Em cena, descabelava-se, bebia compulsivamente, lançava baforadas de nicotina ao ar e costurava as frases com palavrões arrepiantes para um público mais acostumado com os bons modos da atriz.
Símbolo inconteste de beleza, ela, no momento crucial da peça, comia um pão com mortadela na frente de todos, enquanto chorava com a maquiagem completamente borrada. Ao se despir de qualquer vaidade, Tônia entrava para o primeiro time de grandes damas do teatro nacional. Estava par a par com o prestígio de Cacilda Becker e Glauce Rocha, ambas mortas no auge da carreira.
Politizada, enfrentava a ditadura militar nas ruas e nos gabinetes. Foi com o texto de Plínio Marcos debaixo do braço conversar com os generais. Alguns riam dela. Acreditavam que a montagem de “Navalha na Carne” seria um fiasco. O pensamento era mais ou menos assim: “Imagina, uma mulher fina e bela fazendo o papel de uma desclassificada?”.
Tônia se mantinha firme em realizar a montagem. A peça foi liberada na certeza de que seria um fracasso. O inverso ocorreu. A atriz deu uma guinada na carreira, ganhou o Prêmio Molière por unanimidade e entrou para o panteão das grandes intérpretes do país.
“Até o meu marido César exigiu que eu não dissesse palavrão algum. Em vez de dizer puta que eu falasse vaca, que trocasse merda por droga. Respondi que era tarde, já tinha entrado nisso até o pescoço, agora iria até o fim. E fui. E o resultado todos sabem: ganhei dinheiro, prestígio e respeito”, conta Tônia.
Maria Antonietta Farias Portocarrero sempre foi uma musa deslumbrante que “iluminava Ipanema, as salas, as praias, as ruas…”, como escreveu o poeta Paulo Mendes Campos. Casada com Carlos Thiré, Tônia Carrero resolveu estudar teatro na França, com o mestre Jean-Louis Barrault.
Quando voltou ao Brasil, correu para fazer história. Estreou ao lado de um jovem desconhecido advogado com aspiração a ator, Paulo Autran. Nascia assim, em 1949, dois mitos dos palcos, que se tornariam inseparáveis. A peça “Um Deus Dormiu lá em Casa” ganhou prêmios de revelação para os dois debutantes.
“Tônia Carrero, talento magnífico, representa uma revelação estarrecedora em nosso teatro. Dir-se-ia não uma estreante, mas uma atriz de longo tirocínio, que alia a belíssima figura a um talento dos maiores. Tônia representa um prodígio”, escreveu Gustavo Dória, em 19 de dezembro de 1949, em “O Globo”.
Todos queriam Tônia Carrero. Os Estúdios Vera Cruz, a Hollywood brasileira, convidou-a para estrelar “Tico-tico no Fubá”. Sucesso nacional. Ali, ela seria dirigida pelo italiano Adolf Celi, um dos comandantes do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Eles se apaixonaram perdidamente e a atriz caiu no centro de um conflito amoroso envolvendo a primeira dama dos palcos brasileiros, Cacilda Becker. Só se reconciliaram em 1969.
Há uma década, em 2007, Tônia Carrero saiu de cena. Estava nos palcos com “Um Barco para o Sonho”, que ficou seis meses em cartaz no Rio. Ao lado de Mauro Mendonça, recriava uma emocionante história de amor na terceira idade. Tive a honra de assisti-la. Depois, apareceu também em “Chega de Saudade” (2008), filme de Laís Bondasky.
Agora, Tônia Carrero segue os caminhos naturais da vida. Morrer aos quase 95 anos pode ser inevitável e natural. Mas tentar matá-la por boatos é doentio e nojento.