Brigas nas redes sociais dão poder que O Mecanismo não merece ter
Série do diretor José Padilha acirra uma guerra de verdades nas redes sociais. Obra, no entanto, está aquém de um debate profundo
atualizado
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Quando o episódio da série O Mecanismo começa, somos apresentados ao personagem Marco Rufo, que vasculha o lixo do doleiro Roberto Ibrahim, e mostra, madrugada adentro, a prova das falcatruas financeiras. O absurdo do argumento é descomunal. Quase um aviso de segurança para quem ainda acredita tratar-se de um documentário dramático: é, na verdade, um exercício de fantasia.
Mesmo assim, a série O Mecanismo, da Netflix, abriu uma batalha nas redes sociais. Um embate extremamente cego e ideológico em torno de verdades incapazes de serem respondidas pela obra de ficção. Por mais pública e contaminada que esteja a visão ideológica do diretor José Padilha, a criação está no campo fantasioso. Não há como exigir coerência dos fatos inspiradores, mesmo que pareçam manipulados pela fé política do criador.Nesse sentido, a campanha para cancelar a assinatura da Netflix ou de avaliar negativamente a série refletem, no mínimo, a precipitação do calor da hora. O Mecanismo não é uma obra documental, não há compromissos com dados e fatos.
Isso, logicamente, não exime o diretor José Padilha de ter feito uma obra de ficção politicamente panfletária. Tampouco rebate as críticas de desonestidade intelectual ao trocar diálogos da Lava Jato extremamente públicos. O hediondo “estancar a sangria” para barrar a Lava Jato, dito pelo senador Romero Jucá, foi parar na boca do personagem rascunho do ex-presidente Lula.
A revolta em torno de O Mecanismo dá à série um poder que ela não merece ter. A obra inventada no computador parece esclarecer aos brasileiros o fato ainda não compreendido pelo país desde que a Lava Jato detonou a sequência de escândalos políticos. Não existe unanimidade nem conhecimento aprofundado por parte da população sobre os bastidores dessa gigantesca e histórica operação anticorrupção.
O país polarizado vê o juiz Sérgio Moro de ângulos diferentes. Um herói para uma parte. Um juiz partidário para outra
O Brasil vive mergulhado numa guerra de verdades. O império das opiniões e a fábrica de fake news colocaram um véu sobre o que podemos pensar em realidade. Até hoje, os brasileiros continuam a discutir se “foi golpe” ou “não foi golpe” o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Não à toa, as universidades, centros de produção de conhecimento, sentem a urgência em debater o fenômeno em sala de aula.
Era para termos a noção sobre o processo de impeachment e os seus interesses políticos e de mercado. Era para esmiuçarmos a relação desse evento político com a Lava Jato. Mas, infantilmente, continuamos a produzir temas superficiais e maniqueístas: de quem bateu panela, de quem não bateu.
A própria série O Mecanismo reproduz essas infantilidades quando evoca os tais “coxinhas” e uma série de clichês na enfadonha narração
Não se tem uma visão de compreensão do país após o tsunami político provocado pela Lava Jato. A percepção segue como uma interminável partida de futebol, na qual torcidas políticas esforçam-se para gritar mais alto e interferir no ritmo do jogo. Não há diálogo. É a ode à paixão e, sua antítese, ao ódio.
Talvez, por isso, O Mecanismo tenha recebido um valor midiático desnecessário. Primeiro, pelo que tudo indica, nasce como uma série a ser vencida pelo tempo, pois está contaminada pela visão do homem e não do artista Padilha. Segundo, porque, em lógica narrativa, é extremamente entediante. Chegar ao fim da primeira temporada foi um ato obrigatório.
Ainda é triste observar a confusão de correntes partidárias jogando os intérpretes da série numa arena aos leões. Eles não assinaram contrato para fazer propaganda política nem publicidade. São atores e atrizes a serviço de um roteiro ficcional e essa premissa não põe em xeque a integridade ética deles. É mais um descontrole das torcidas, que, na vida real, são capazes de matar a pauladas, socos e pontapés um semelhante com a camisa do time adversário.
Que O Mecanismo siga sua trajetória comercialíssima e vamos aguardar uma ficção de arte capaz, sem bandeiras, de nos lançar para um campo de pensamento mais elevado do que o prevalecente no momento.