Atrizes negras se apresentam ao ar livre e espectadora reage: “Cabelo ruim está na moda”
A convite do “Metrópoles”, o grupo Embaraça faz cena curta do espetáculo “Pentes” na entrada de shopping, emociona plateia e arranca impropérios de mulher racista
atualizado
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A entrada do Conjunto Nacional é frenética. Num piscar de olhos, uma multidão vai e vem pela Rodoviária. A convite do Metrópoles, três atrizes negras se propõem a quebrar esse fluxo. Enfileiram-se em alturas diferentes como se fossem um totem. A primeira, com uma boneca Barbie em mãos, senta-se ao chão. A segunda acomoda-se num pufe. A terceira permanece de pé. Os espectadores estranham o movimento e se aglutinam para observá-las.
Enquanto ouve-se o cantarolar de “Pour Elise” (aquela melodia de Beethoven que toca nas caixinhas de música das meninas), o trio saca um pente de madeira e uma tenta desembaraçar o cabelo crespo da outra (até o da boneca). A velocidade das ações aumenta, enquanto o objeto tem dificuldade de cumprir o objetivo de homogeneizar as madeixas. Prende-se nos fios. Provoca dor. Elas gritam. O alisamento parece ferir na alma. A plateia faz silêncio. Uma mulher, no entanto, não se contém e irrompe a contemplação em tom de revolta.
MULHER – Ridículo! Cabelo ruim tá na moda.
As atrizes do grupo Embaraça não ouvem o insulto e seguem a cena do espetáculo “Pentes”. Da plateia, a adolescente Ana Caren (negra e dona de uma cabeleira vasta e ouriçada) e a senhora Socorro Silva (branca de madeixas lisas e escorridas) revoltam-se e contestam a mulher preconceituosa, que sai de fininho carregando consigo o peso do preconceito secular.
Quem fica até o fim aplaude. Há quem venha com admiração tocar na cabeleira das atrizes e saber detalhes do espetáculo. Dona Socorro é uma das mais emocionadas. Ela cerca as atrizes, observa com carinho cada uma delas, agradece o que viu e conta às atrizes sobre o lamentável ocorrido.
SOCORRO – Não entendo como aquela mulher fala uma asneira daquelas. Achei lindo. E para mim só prova que as pessoas têm de ser do jeito que elas querem.
A raiz do poder
O jeito Ana Caren de ser é poderoso. Ao lado das amigas Carol e Débora, todas na fase debutante, tinha passado apressada e por um triz não viu a apresentação-relâmpago do Embaraça. Até um ano atrás, alisava o cabelo. A mudança foi apoiada em casa. Hoje, exibe, com orgulho, a cabeleira à la Taís Araújo. Quando sai na rua, ouve de elogios a impropérios racistas. No momento em que o ser humano exibe sua pequenez, Caren enche-se ainda mais de orgulho, arrebita o queixo e segue seu destino.
ANA CAREN – Com esse cabelo, sinto-me mais poderosa.
É esse poder que as atrizes querem compartilhar com a plateia. Fernanda Jacob, Ana Paula Monteiro e Tuanny Araújo conceberam o espetáculo a partir de depoimentos pessoais e de extensa pesquisa sobre as opressões ao cabelo da mulher negra. Em comum, todas tinham o histórico de repressão simbolizada pelo alisamento dos fios. Libertaram-se numa UnB mais democrática e misturada pela presença dos alunos negros do Sistema de Cotas, que permitiu o acesso de Fernanda e Tuanny ao Departamento de Artes Cênicas. Ali, ocorreu a revolução. Quase que simultaneamente deram adeus à maldita chapinha, antes representada pelo ferro quente de alisar (um símbolo de tortura para tantas meninas negras de outrora).
Alices negras
Fernanda e Tuanny se lembram de um dia marcante. A professora Felícia Johansson entregou o texto de “Alice no País das Maravilhas”, pediu que a turma lesse em casa e depois escolhesse a personagem que cada um gostaria de fazer. Na hora da votação, a maioria das meninas brancas naturalmente levantou o dedo desejando fazer a protagonista. A mestra, uma das talentosas atrizes e diretoras da cidade, olhou em volta e teve uma ideia brilhante: a de ter em cena várias Alices e todas negras.
FERNANDA – Eu me lembro nitidamente dos dedinhos suspensos voltando à posição inicial quase que em câmera lenta.
THUANNY – E de algumas pessoas relutando com a proposta.
Não teve jeito. As Alices negras correram através do espelho e saíram de cabelos ouriçados, com a negritude à flor da pele, e prontas para chegarem à concepção do espetáculo “Pentes”, que corre o país. Já foram a Manaus e, caminhando pelas ruas, foram hostilizadas por conta do visual. Mas, em cena, aplaudidas de pé. Passaram por BH e tiveram o espetáculo apontado pela crítica como “panfletário”.
THUANNY – Somos atrizes formadas pela UnB e nosso processo de criação tem um conceito estético. No entanto, esse aspecto, para muitas pessoas, não chama a atenção porque falar de racismo é mais incômodo.
Brasil medieval
É realmente incômodo admitir, em pleno século 21, que deixamos de ser a tal nação cordial para assumir a face racista, com brasileiros de formação miscigenada sendo capazes de se referir a compatriotas negros com xingamentos do tipo “macacos”. Ou ainda reprimir a liberdade de ser de mulheres negras com palavras como “cabelo bombril”, “juba” e “esfregão”. Foram com esses vocábulos de injúria que racistas atacaram as redes sociais da atriz Taís Araújo, um dia depois de as atrizes do Embaraça se apresentarem no Conjunto Nacional.
Com os cabelos ouriçadíssimos e o teatro politizado à ponta da língua, as atrizes de “Pentes” vão seguir sua estrada nos palcos, puxando os preconceitos de alguns e revolucionando muitos. Como Carol, a amiga de Ana Caren, que, depois da cena da peça no shopping, viu os seus cabelos ganharem volume ao vento.
ANA CAREN – A gente soltou o cabelo dela. Olha só como Carol ficou mais linda!
“Pentes” volta a cartaz no Teatro Sesc Garagem (sábado, 7/11, e domingo, 8/11), às 20h, com ingressos a R$ 10 (inteira). Depois, segue itinerância pelo DF.