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As dramaturgias iniciais de Brasília eram bombas jogadas na ditadura

Série Teatro 061 mostra o conteúdo das peças “Cristo X Bomba” e “Caravelas”, ambas de Sylvia Orthof, estudo de tese inédita da UnB

atualizado

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1968
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As peças “Cristo X Bomba” (1968) e “Caravelas” (1966), ambas assinadas por Sylvia Orthof, foram as mais representativas do teatro brasiliense na década de 1960. Momento em que a nascente arte local sofria com a brutalidade da ditadura militar.

Numa pesquisa inédita que acaba de ser disponibilizada ao público, Carlos Mateus Castello Branco conseguiu obter, por meio de sua tese de doutorado, os dois textos de Sylvia Orthof, nunca publicados e fora de acesso.

Tudo indica que “Cristo x Bomba” foi escrita em 1967, uma vez que é apresentada em janeiro de 1968. A peça revela toda a preocupação da autora em se posicionar por meio da dramaturgia contra os absurdos e as crises de valores pelos quais passava a humanidade

Carlos Mateus Castello Branco

A peça começa instigando o público a pensar o que se fazer diante do teatro, fórum de ideias e de pensamentos revolucionários.

Marlui – Então, vocês vieram ouvir os sinos, tal como os meninos que sempre pedem a história do Chapeuzinho Vermelho e do Lobo mau?

Moema – Vocês vieram para rezar ou para saber se somos capazes?

Sylvain – Vieram criticar?

A sequência de perguntas parece alertar o público de que a ingenuidade deve ser deixada de lado ao longo da encenação e que, definitivamente, esta não é uma peça de entretenimento, mas sim de reflexão crítica

Carlos Mateus Castello Branco

As personagens giravam em torno da figura do Astronauta, conquistador do espaço. Há uma costura com a trajetória de Jesus Cristo, releituras de orações como o “Pai Nosso”, a “Ave Maria” e o “Credo”. O texto crítico dialoga com o teatro dialético e didático de Bertold Brecht.

De pronto, o público é convocado a não ter uma postura passiva diante do palco. As provocações são constantes:

Sylvain – Isto que fazemos não é teatro. Fiquem à vontade. Viemos procurar a fórmula da nova comunicação. Estamos na época dos empacotados.

 

Atrizes lutam no Rio em foto histórica. Sylvia, em Brasília

 

Política, a peça “Cristo X Bomba” ganhou, em 1968 (antes do AI-5), o prêmio do Serviço Nacional de Teatro no V Festival Nacional de Teatro de Estudantes, no Rio de Janeiro. Sylvia Orthof já era a grande personalidade teatral dessa primeira década de Brasília. Não demorou para seu trabalho ser desarticulado pela ditadura militar e ela ter que pedir exílio, interrompendo um projeto promissor de criação dramatúrgica.

Sylvia estava afetada pela violência que se acirrava na capital (sua casa, UnB e CIEM) e aquela que atingia o mundo (Guerra do Vietnã e Guerra Fria). Um dos pontos altos é a personagem Bomba, que se comunica em todos os idiomas e é capaz de seduzir todos os homens.

Bomba – Eu sou ótima, sensacional!! Viva a morte! Viva a morte!

Sylvia escrevia em tempo real do avanço gigantesco da televisão nacional, usada, na ditadura militar, como estratégia para a implantação da indústria cultural. A autora percebia que a integração nacional proposta pela massificação de vendas de aparelhos de TVs constituía um projeto de alienação e de forte controle social.

Augusto – Não queremos que você, depois do jantar, assista hipnotizado a uma emoção. Desempacote a sua consciência industrializada!

A peça se desdobra em questionamentos importantes sobre a religiosidade e a ciência a favor da guerra

Moema – Quem foi Jesus? Não viemos apresentar um cristo colorido, bonitinho, cercado de sinos, flores, santinhos. Nossa reza é outra!

Sylvain – “Meu pai, meu pai, porque me abandonaste?

Augusto – Há fome de pão no mundo!

Sylvain – Há sangue no lugar do vinho”

Lana – A capsula útero/ Mãe do homem de hoje/ útero frio, sincopado/ Cheio de cálculos… matemáticos”

E toca na ferida do preconceito racial:

Augusto – Eu sou branco/ Não tenho preconceito racial/ Mas preto quando não suja na entrada, suja na saída/ Como dizia minha avó!”

Moema – Mas as negras não querem nada! Daqui a pouco, não vão se contentar mais com a comida e a senzala…vão querer usar perfume francês. Credo!

“Caravelas”, o acontecimento
Ligado ao Centro de Integração do Ensino Médio (experiência modelo da UnB fechada pela ditadura), o espetáculo “Caravelas” trazia um aspecto mais pedagógico. Com o grupo Tema (Teatro de Máscaras), Sylvia Orthof montou uma experiência espetacular com coro, trilha sonora, projeção de slides e um cenário de cordas, assinado por Nando Cosac.

CORO FEMININO MUNDO NOVO – Mundo antigo: Caravela alucinada ancorada no Planalto com saudades da água verde, iluminando o cerrado com seu lago fabricado.

CORO MASCULINO MUNDO ANTIGO – Mundo novo! Novo sonho é o que nos faz. Brasil nascendo de novo. O mar ficou pequenino. Nossa esperança é maior.

(Projeção de slides com o “Plano Piloto”, ou, que vai firmando os contornos à medida que as vozes evoluem, para um final de perfeita nitidez)

Carlos Mateus Castello Branco aponta que os textos da peça eram de autores como Camões, Florbela Espanca, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Pero Vaz Caminha, Caymmi, Cassiano Ricardo, Santiago Naud e Gil Vicente. Além desses escritores, há o poema Nau Catarineta que pertence ao folclore português, além dos textos atribuídos à equipe.

O descobrimento do Brasil, o pacto com o público, a aventura dolorosa portuguesa, a tentação do diabo, a súbita incursão rumo ao oeste, a idealização de Brasília como um renascimento do Brasil, a crítica ao capitalismo, ao consumismo e ao senso comum são alguns dos aspectos tratados na peça.

Essa peça tem um aspecto essencial para a compreensão do teatro brasiliense, uma vez que, a partir da recuperação de algum dos cânones da literatura portuguesa e brasileira, a dramaturga orquestra, em síntese, uma aula sobre a história do Brasil, sobre a história literária portuguesa até sobre os tempos em que a peça está sendo montada na moderna cidade de Brasília

Carlos Mateus Castello Branco

FONTES:

Acervo do Correio Braziliense
“(A)bordar Memórias, Tecer Histórias: Fazeres Teatrais em Brasília 1970-1990”, dissertação de mestrado de Elizângela Carrijo
“Dramaturgia Brasiliense nos anos 1960 e 1970: Questões Sobre Teatro e Política”, tese de Carlos Mateus de Costa Castello Branco
“A Paixão de Honestino”, de Betty Almeida
“Histórias do Teatro Brasiliense”, de Fernando Pinheiro Villar e Eliezer Faleiros de Carvalho
“Panorama do Teatro Brasiliense em 1968”, artigo de Carlos Mateus de Costa Castello Branco, publicado na revista “Intercâmbio”
“A Cidade Teatralizada”, de Celso Araújo
“Educação Pela Arte: o Caso Brasília”, de Maria Duarte de Souza
“Canteiro de Obras”, Notas Sobre o Teatro de Brasília, de Glauber Coradesqui

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