É urgente apresentar a obra de Maria Martins aos ocupantes do Alvorada
Na futura residência, a primeira-dama vai conviver com a escultura Rito dos Ritmos, híbrido entre mitos amazônicos e desejos humanos
atualizado
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Nesta semana, fomos surpreendidos com uma notícia estapafúrdia. A futura primeira-dama do país, Michelle Bolsonaro, teria pedido para que obras sacras fossem retiradas do Palácio da Alvorada, a futura residência. O motivo? Dogma religioso.
Felizmente, houve um desmentido. No debate nacional, ficou, ao menos, um entendimento: a obra de arte que extrapola seu tempo traz em si o sentido universalista. Não importa se retrata um mito de qualquer religião da época. Se for verdadeiramente uma criação artística, não serve a propósitos de adoração de fé. E, sim, ao sublime propósito de sensibilizar a subjetividade humana.
Uma verdadeira obra monumental, o Palácio da Alvorada guarda em si acervo de arte único. Um deles: a escultura Rito dos Ritmos, da genial artista Maria Martins (1894-1973). Quando desembarcar com a mudança, Michelle Bolsonaro vai ficar diante de uma das mais importantes peças da escultura surrealista do mundo. Nesse sentido, peço licença, para apresentar, à futura primeira-dama, a sensacional produção de Maria Martins.
Faço isso antes que algum incauto lhe informe se tratar de ode ao paganismo ou à materialização de algum mensageiro de luz entre a infernal vida humana e o célebre mundo dos espíritos.
Eu sei que minhas Deusas e sei que meus Monstros sempre te parecerão sensuais e bárbaros. Eu sei que você gostaria ver reinar em minhas mãos a medida imutável dos elos eternos
Maria Martins
A obra-prima Rito dos Ritmos está fincada nos jardins do Alvorada e é muito fotografada por contrastar a forma surreal à da fachada modernista do Palácio. A imagem parece fundir braços e pernas de duas figuras antropomorfas. Se olharmos fixamente para a escultura, a sensação é de expandir-se do inanimado bloco de bronze para o expansivo ambiente de verde e concreto que a circunda.
Há quem afirme que Rito dos Ritmos tem inspiração na arte conceitual de Marcel Duchamp, de quem Maria Martins foi amiga e musa. Há obras do francês inspiradas nela. Uma delas reproduz um dos seios de Maria, na qual o espectador poderia espontaneamente tocá-la. A artista mineira viveu o auge de sua criação no exterior, quando acompanhava o marido e embaixador Carlos Martins pelo mundo. De dia, fechava-se em seu ateliê, de noite, exercia o seu papel de embaixatriz.
Um dia me deu vontade de talhar madeira e saiu um objeto que eu amei. E depois desse dia me entreguei de corpo e alma à escultura. Primeiro, em terracota, depois mármore, depois cera perdida que não tem limitações
Maria Martins
Maria Martins era amiga de surrealistas e dadaístas e teve uma de suas exposições, em Nova York, avalizadas pelo escritor André Breton, que prefaciou o catálogo.
Maria, e atrás dela – quer dizer, nela – o Brasil maravilhoso onde sobre os mais vastos espaços … paira ainda a asa do irrevelado. A porta imensa apenas entreaberta sobre as regiões virgens onde as forças intocadas, completamente novas, do futuro, se escondem
André Breton
Em Maria Martins – Uma Biografia, a jornalista Ana Arruda Callado detalha esse trânsito magnifico da escritora: “Conviveu Harry Truman, Mao Tsé Tung e Getúlio Vargas, com quem trocava correspondência num tom informal, além de Juscelino Kubitscheck, que foi a seu enterro, no Museu de Arte Moderna do Rio, um verdadeiro happening“.
Uma das maiores inspirações de Maria Martins é a floresta amazônica, seus mitos, tradições e impacto visual. Dessa vertigem visual e simbólica, surgem os seres híbridos que parecem se fundir com animais míticos, como aranha e cobras, para expressar desejos latentes e profundos em formas contorcidas e sensuais.
A sensação visualmente é explosiva. Difícil, ficar diante de uma obra de Maria Martins sem ser provocado. A obra fala por si
A jornalista e doutora em história da arte Graça Ramos, autora de Maria Martins: Escultora dos Trópicos, mergulhou nessa influência amazônica a partir do conceito de instabilidade na obra da surrealista. “O híbrido entre o corpo humano, o vegetal e o animal é a própria representação da floresta”
“A grande questão da escultura era o desejo, o qual não tem forma ou tem muitas formas. Nada é muito fixo, definido. Ela se apropria da potência e da viscosidade da floresta transformando-a em formas não definidas”, diz Graça Ramos.
No Palácio Itamaraty, em Brasília, há duas esculturas de sua autoria: “A mulher e sua sombra” e “O canto da noite”.
Pouco importa essa ou aquela forma de expressão desde que o artista transmita a mensagem que é sua e em seu idioma próprio, e não use essa espécie de ‘modismo’, muitas vezes responsável pela grande pobreza de artistas de real valor
Maria Martins