A revolução da negra de cabelo cor de rosa choque
Em cartaz no CCBB com o infantil “Abigail e a Girafa”, Jessica Cardoso mexe com o imaginário Disney das crianças, aquele recheado de princesa brancas talhadas na Escandinávia
atualizado
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Ainda dominando a arte de se equilibrar, a pequena Isadora corre pelo foyer do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Quer ficar grudadinha na “menina que conversa com girafas”. Chega perto, olha admirada e parece encantada diante de Jessica Cardoso, ainda caracterizada da personagem Abigail. Ao lado de Isadora, outras dezenas de crianças abusam da tecnologia. Pedem aos pais selfies, vídeos e fotos. Majoritariamente brancas, meninos e meninas deslumbram-se com a doçura e a beleza da atriz negra de cabelos, como gosta de dizer, livres e da cor de rosa choque.
O momento é de felicidade. No entanto, antes daquela sessão do infantil “Abigail e a Girafa”, Jessica fechou os olhos, aspirou coragem e criou uma fortaleza para enfrentar pequenos monstros imaginários que sopram horrores aos seus ouvidos. Dos impropérios murmurados, um se alastra como uma sombra: aquele em que, na sua natural sinceridade, alguma criança aponte a atriz como estranha aos seus olhos.JESSICA – Essa ferida surgiu forte e ainda tenho 40 sessões pela frente. Veio um medo de ouvir alguma criança gritar: “Ela é feia”. Tem sido assim. Mas, depois, elas têm me cercado e tudo vira uma felicidade.
Menina negra
Em sua pequena revolução, Jessica sabe que mexe com o imaginário de meninos e meninas acostumados com heroínas brancas de feições talhadas na Escandinávia. Na estreia, ficou diante de Gabriela, uma menina negra de cabelos cacheados, que olhava para Abigail de forma tão intensa que a atriz chorou.
JESSICA – Fiquei muito feliz com a admiração de Gabriela, naquele dia, a mais animada. Vi que essa menina teve a chance de ver alguém parecida com ela, inserida numa obra artística não como uma personagem tratada em condições de beleza e dignidade.
Nascida em classe média, Jessica cresceu sem essa identidade. Não traz na memória histórias traumáticas de injúrias nem racismo. A cobrança que sofria era subjetiva. Queria se aproximar dos padrões que a rodeavam.
JESSICA – Cresci assistindo à TV Globo, aos filmes de Hollywood, escutando músicas pop internacionais, visitando meus familiares brancos (a ala materna é majoritariamente de pele clara) e cercada de amigos e amigas brancas nas escolas particulares. Quantas vezes, para frequentar uma festa de aniversário, eu tinha que marcar um horário no salão para alisar meu cabelo, aproximando-se assim de uma estética artificializada, e desaparecendo com a textura original dele.
Poderosas da UnB
Essa fase Jessica batiza de “processo de embraquecimento velado”, movida pela premissa “a pele era preta, mas a alma branca”. Não havia consciência nem postura política. A mudança se deu aos 19 anos, quando entrou na UnB para estudar Artes Cênicas. Ali, nos corredores, viu negras belíssimas com seus cabelos livres e blacks a desfilar arrancando desejos e marcando presença. Era a hora de enfrentar o espelho.
JESSICA – Chega a ser surreal quando me olhei de outra forma. Minha autoestima melhorou crucialmente desde esse período. Minha cabeça agora carregava menos peso em cada cacho que meus fios pretos faziam.
Protagonistas
Jessica se enveredou no teatro em 2010. Em pouco tempo, coleciona duas protagonistas: Abigail e a intensa da poetisa norte-americana Anne Sexton, ambas vividas no palco do CCBB.
JESSICA – De repente, estava estampada no banner preso na fachada do CCBB. Aquilo mexeu comigo. Senti uma responsabilidade e um orgulho. Com Abigail, a experiência é outra, dessa descoberta toda que eclode dentro de mim.
É essa Jessica Cardoso que circula por esse tempo esquisito, que ainda tem humano se achando superior pelo tom de pele. Quer saber? Não provoque essa negra de cabelo rosa choque. Ela está com a arte à flor da pele.
O nome dela é Jessica
Escrita livre
Atriz, modelo, mãe de Caetano, professora, Jessica Cardoso tem 24 anos, é hiperativa e tem um dom para a escrita. Mantém um blog de reflexões, confissões e ficções, como um diário disciplinado de menina. Ali, registra seu amadurecimento como mulher e o florescer da consciência negra. São flashes memoriais e sonhos, muitos sonhos de uma jovem atriz:
“Estava caminhando em direção à portaria do prédio onde moro quando uma senhora negra muito simpática me cumprimenta com um ótimo “Bom dia!” e em seguida apontando para os apartamentos, me pergunta: “Você trabalha aí?”
“Você. é.
Eu. sou.
Eu ainda me atrevo a dizer esta frase tão pequena, poderosa e tão sumariamente absurda. Quantas leituras e vivências sobre a contínua transformação do nosso “eu” serão necessárias pra que eu não digite mais isto? Infinitas. Incontáveis. Inimagináveis. Todas desnecessárias porque EU SOU”
Confira aqui o blog de Jessica Cardoso.