A linda história do presépio mais “estranho” do mundo
Localizada nas Obras Assistenciais de Irmã Dulce, a instalação é feita pela voluntária e artista Iraci Lordelo, amiga da freira desde 1947
atualizado
Compartilhar notícia
Estou em Salvador e, como bom baiano, fui visitar as Obras Assistenciais de Irmã Dulce, localizadas no Largo de Roma, em Salvador. Lá, fiquei diante do que, talvez, poderia ser o presépio mais “estranho” do mundo. Nos primeiros minutos, não conseguia raciocinar por que eram inúmeras as informações vindas do que mais parecia ser uma instalação artística do que uma representação do nascimento do menino Jesus.
Até chegar à cena principal, na qual o menino Jesus repousa numa manjedoura, havia um longo caminho feito por bichinhos retorcidos, de aspectos estéticos que fugiam do conceito de perfeição e de beleza, que norteiam essa simbologia cristã.
Era como se esses animais estivessem doentes, magros de fome, com dificuldades de se colocar de pé. Eles seguiam um caminho até chegar numa cúpula, onde bonecas diversas estavam dependuradas como se fossem anjos. Presas pelos pescoços, algumas pareciam sufocadas. Outras estavam de cabeça para baixo. Eram de modelos diversos, muitas de cabelos coloridos. Uma ou outra, quase sem peruca.
Ao chão, aqueles animais raquíticos se multiplicavam. Havia uma boneca gigante com vestes de freira, numa alusão à Irmã Dulce, o Anjo Bom da Bahia, que empunhava um carrinho de mão com um bebê: Jesus.
Achei tudo muito forte e impactante. Apesar de ter a impressão do “feio”, aquele presépio parecia conter uma mensagem tão verdadeira, que dialogava com a história do Natal e da própria Irmã Dulce, que abrigou sempre os desvalidos.
Postei fotos nas redes sociais, seguida da frase:
Quem fez esse presépio aqui de Salvador tem um senso estético peculiar
As pessoas riram, dialogaram, brincaram e opinaram. Houve quem visse o belo, o feio, o singelo e até o “brega”. Até que a jornalista e minha amiga Ana Calazans, hoje morando em Maceió, revelou:
É o presépio de Iraci! Esse anjinho de luz aqui: na foto com meu filho Ian Nunes em 2010. Ela é a criatura mais pura e elevada que eu conheci na vida. Faz os bichinhos de lixo, guarda tudo, monta tudo. Deve estar próxima dos 90 anos e chega às obras de Irmã Dulce às 5 da matina. Era amiga de Irmã Dulce e trabalha sem ganhar nada
Ana Calazans
Fiquei comovido e fui pesquisar sobre a artista, autora desse presépio tão peculiar. Dona Iraci Lordelo é amiga de Irmã Dulce desde 1947. Baiana de São Félix, a 110 quilômetros de Salvador, ela foi testemunha no processo de beatificação. Conta que, com a freira, aprendeu o sentido do maior mandamento da Igreja: ‘amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo’.
Peregrinou pelas ruas da capital baiana com Irmã Dulce, com carroças e carrinhos de mão a recolher doentes, distribuir comidas e cortar cabelos. Viu a religiosa sentar ao chão com “ladrões e doentes” para comer com eles e viu de perto a miséria humana. Quando chegou em Salvador, era uma menina de 14 anos.
Resolvi ficar porque desde menina gosto de ajudar. A irmã roubou meu coração e eu fiquei presa a ela até hoje, me apaixonei pelo seu trabalho
Iraci Lordelo
Dona Iraci fez cada peça do presépio e mantém uma rotina nas obras de Irmã Dulce. Chega de madrugada, ajuda no café e visita enfermarias, onde tem sempre uma palavra de afeto. Em dezembro de 2001, ela recebeu o prêmio nacional de voluntariado da Kanitz e Associados, na categoria destaque feminino.
Essa é a mulher emocionante que está por trás do presépio tão peculiar e tão verdadeiro.