A dor do criador. Escultor dos orixás da Prainha emociona-se ao falar do ataque à escultura Oxalá: “Acabou o tempo de paz”
Um dos mais respeitados artistas brasileiros, Tatti Moreno cobra do GDF medidas de segurança para evitar novos atos de vandalismo ao bem público e artístico
atualizado
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No Panteão dos orixás, Oxalá é o “Pai Maior” e simboliza a paz entre os seres viventes. Diante dele, os adeptos das religiões de matriz africana se curvam em respeito ao criador do mundo ou “àquele que os olhos tudo veem”. Atacar a imagem desse Deus é, sobremodo, uma ode à guerra, ao ódio e à intolerância. A sensação é de afronta ao divino, um sentimento que corrói os que creem nesse “senhor” sereno e pacificador.
Nenhuma dor, no entanto, parece ser tão pungente quanto a do artista que esculpiu a obra vilipendiada. Ao telefone, a voz de Tatti Moreno desenha essa tristeza profunda. Ao ser entrevistado pelo Metrópoles sobre o ataque à obra “Oxalá”, as palavras do artista engasgam-se. Ás vezes, falham e provocam silêncios, que dizem muito sobre esse profundo abismo aberto entre a emoção do criador e a irracionalidade dos vândalos.Estou muito emocionado. Acabou o curto tempo de paz que tivemos. Nem sei direito o que pensar. Talvez, que voltamos à Idade Média, ao tempo do obscurantismo, onde o candomblé e a capoeira eram proibidos
Tatti Moreno
Indignado
Em janeiro de 2010, Brasília fez festa para Tatti Moreno reinaugurar os 16 orixás da Prainha, num convênio que, segundo a Fundação Palmares, custou mais de R$ 700 mil. Até hoje, o artista labuta para receber uma das parcelas.
.Recuperamos todas as imagens depois de terríveis e sucessivas agressões. Agora, elas voltaram a ficar expostas aos ataques. Não sei a natureza desse vandalismo. Só sei que me provoca uma indignação intensa
Tatti Moreno
Promessas ao vento
Tatti Moreno pretende vir a Brasília avaliar de perto os estragos. Sabe que, além de “Oxalá”, outras esculturas tiveram os instrumentos roubados.
Quando sai de Brasília, em 2010, o GDF prometeu adotar medidas de segurança, com câmeras 24 horas, iluminação e policiamento, na Prainha. Foram promessas ao vento. O relato que tenho é de total abandono
Tatti Moreno
Bem público
Antes de qualquer intenção religiosa, o “Panteão dos Orixás” é um bem artístico e público, que precisa ser zelado pelo governo. Ao ser agredido, seja lá qual for a motivação dessa insensatez, viola-se um patrimônio do estado. O ato implica em danos culturais e prejuízos financeiros.
Nos finais de semana, o local, que por si só evoca o silêncio e a contemplação, é perturbado com o som às alturas de carros estacionados sobre a grama e à margem do lago, usada com fins variados (churrasco, motel a céu aberto e consumo de bebidas alcoólicas e drogas). Há, portanto, um constrangimento aos adeptos das religiões afrobrasileiras que vão ali orar e depositar oferendas, no único espaço destinado a essa crença no Plano Piloto.
Amigo de Jorge
Tatti Moreno, o criador do famoso Panteão de Orixás do Dique do Tororó, é um dos artistas brasileiros mais respeitados por fundir arte e religiosidade africana. Ele pertence ao seleto grupo de criadores visuais que orbitava em torno do casal de escritores Jorge Amado e Zélia Gattai. É um dos responsáveis por ajudar a combater a intolerância as religiões de matriz africana no século 20 ao lado dos saudosos e geniais Carybé, Calasans Neto e Mário Cravo.
As mãos de Tatti Moreno arrancam do fundo do mistério o clarão dos encantados, nossa verdade fundamental
Jorge Amado
Bíblia flutuante
No ano passado, Tatti enfrentou uma polêmica descabida em Salvador, quando uma vereadora propôs colocar uma “Bíblia” flutuante próxima aos orixás do Dique. Projeto que foi rechaçado pela opinião pública e pela Câmara dos Vereadores.
Convoco todo o povo da religião afro-brasileira que também defenda a Prainha e seus orixás. Aos cidadãos, peço que cobrem do governo segurança e integridade para esse patrimônio de arte e do turismo
Tatti Moreno
Deusas do lago
Em 2018, uma nova escultura de Tatti Moreno deve ser colocada sobre o lago Paranoá. Ele tem o convite para conceber uma imagem inspirada nas deusas Oxum e Iemanjá, orixás que comandam os rios e oceanos. A obra vai celebrar o Fórum Mundial das Águas, que será sediado em Brasília.