Uma crônica só de ida pelos anos oitenta
Na TV, uma nave espacial, mas ao invés de um ruído soturno, ouvimos Prince. A parede chega a tremer com “Purple Rain” no quarto ao lado
atualizado
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Prato âmbar Duralex no colo. Os pés não alcançam o chão quando está sentado na cama. Mais um comercial de biotônico. As colheradas contam o tempo até a volta do filme. Seus amigos foram jogar videogame com os outros meninos. O Babão tá na piscina com os garotos da sala dele.
Da cozinha, aos gritos, sua mãe questiona sobre o dever de casa. Na TV, uma nave espacial, mas ao invés de um ruído soturno, ouvimos Prince. A parede chega a tremer com “Purple Rain” no quarto ao lado. Eles não entendem que existem coisas mais urgentes. Elliot precisa ajudar seu amigo extraterrestre a voltar pra casa.
Joga o prato sobre a cama e tropeça nos soldadinhos de plásticos no chão. Um lado vermelho, o outro azul.
Bate-boca com sua irmã enquanto Eliott apresenta seu novo amigo ao irmão mais velho. Era só abaixar um pouco o volume. Impossível assistir ao filme com esse barulho. Eles não entendem. Mas e se ele for assistir ao filme na Arapuã? Lá tem uma infinidade de TVs e nem um barulho. O problema é que sua pequena bicicleta jamais chegaria à loja nos 5 minutos de intervalo comercial. Algum dia seu pai entenderia que ele usou a Ferrari GT Califórnia por um bom motivo.
O carro voa em algumas lombadas da cidade em câmera lenta. Levando várias buzinadas ele grita desculpa aos céus. As pessoas têm que entender que ou ele aperta o acelerador ou observa a estrada, é pequeno demais para fazer os dois. Um minuto para os comerciais voltarem. A Arapuã deve estar perto, reflete logo antes de enfiar o carro pela vitrine.
Um vendedor de bigode grita ao ver entre farelos de vidro seu aparelho de som Aiko 3 em 1. Grita para o menino fugindo do carro. – I’ll be back, ele responde sem saber o que significa. Corre em busca do primeiro televisor ao seu alcance. A infinitude de seus 20 canais parece não chegar nunca ao desejado. Quando o aparelho finalmente mostra o rosto de Elliot, é tarde demais. Entram os créditos.
O menino senta-se desolado ao chão. Queria muito viver aquele filme. Queria poder estar lá. Ou ao menos ter tempo de dizer adeus aos personagens.
Há uma gritaria em volta da Ferrari espatifada, mas há também uma solução.
Atrás do carro, das pessoas e da vitrine, espera, de portas abertas, um Delorean.