Spoilers: “Stranger Things” transformou os anos 1980 numa hashtag
A nova série do Netflix funciona mais como um glossário do que como uma série narrativa
atualizado
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Assisti “Stranger Things”, o novo hit da plataforma Netflix logo na semana de estreia. E não achei nada demais. Apesar de seu apelo natural a uma pessoa como eu, nascido em 1982 e contumaz devorador de cinema, televisão e literatura pop desde então, a minissérie de oito episódios não me afetou em nada.
Na verdade, não é bem assim. Seu começo me cativou e fiquei ansioso por tudo que os personagens explorariam nos capítulos seguintes. Mas à medida em que a trama e os mistérios foram se desenrolando, ficou evidente que tudo ocorreria da maneira mais previsível possível.
Talvez fosse uma metáfora para aquela esperança que temos, quando crianças, de que tudo é possível quando adulto e aí, chegando lá, nos decepcionamos com expectativas demolidas pela esmagadora realidade do mundo.
Insanidade coletiva
Enfim, terminei de ver e estava pronto para relegá-la ao esquecimento. Com atuações excelentes dos três meninos principais e da menina misteriosa que encontram, junto com um visual maravilhoso e referências divertidas (minha favorita foi o momento “Poltergeist”, no episódio 4, em que um cientista se aventura pra dentro do portal com uma corda amarrada na cintura), a série não havia sido uma tremenda perda de tempo. Só não era nada demais.
Mas aí começou a insanidade nas redes sociais: uma insanidade coletiva que começou a identificar “Stranger Things” como a melhor obra do ano, quando na verdade não é nem a melhor obra do ano a se passar nos anos 1980 (essa seria o filme “Sing Street”, do diretor John Carney). Catálogos inteiros de referências visuais e temáticas foram publicados.
Mas “Stranger Things” usa os anos 1980 como um atalho para garantir uma espécie de credibilidade pop, e não para comentar sobre o cinema da época ou para fazer algo novo. É só reparar como raramente se fala algo sobre ela que não seja também sobre as referências que faz. Assim fica óbvio que se trata mais de um glossário do que de uma obra narrativa.
Série de reclamações
“Stranger Things” é uma série que acertou em cheio o estilo dos anos 1980, aquela “vibe” que uniu o perigoso com o fascinante, aonde amar alguma coisa é arriscar perdê-la, e a inocência infantil é transformada em maturidade. Mas ela erra feio ao tratar seus personagens com descaso e desconsideração.
No centro da trama estão Eleven e um monstro. São os personagens mais intrigantes da trama. E no fim das contas, os mais inconsequentes. Para resumir, Eleven tem o poder X e o monstro tem o poder Y. Como Eleven é nossa personagem do bem e o monstro é do mal, está meio óbvio que o poder X de Eleven vai combater o poder Y do monstro. Para ela derrotá-lo, terá de se sacrificar. Os dois poderiam ser blocos de madeira que não faria a menor diferença para a trama. Não aprendemos nada sobre o monstro e quase nada sobre Eleven.
Pode-se dizer que a jornada de Eleven serve para ensinar lições de vida para os meninos que viraram seus amigos. Pior ainda. Desprovida de motivação própria, ela é um objeto. Nem mesmo tem vontades. Está lá apenas para usar seus poderes quando a situação fica difícil para os meninos e para partir o coração do personagem principal. Pelo menos ET tinha um objetivo, que era partir pra casa.
Quem é Will Byers?
E falando nestes outros personagens, sequer conhecemos Will Byers, que some no primeiro episódio e reaparece no último. Todos os personagens do governo são inconsequentes(sinto mais pena pelo Matthew Modine, que tenta emplacar uma carreira de destaque desde os anos 1980 e nunca conseguiu).
Nancy transa com seu namorado para descartá-lo logo depois e ignorá-lo durante toda a série (que é empoderador, mas ela é uma babaca mesmo assim). Winona Ryder não tem nada pra fazer exceto ficar preocupada e esbugalhar os olhos. E, claro, temos de falar sobre Barb.
Barb apareceu em dois episódios e foi raptada pelo monstro. No último episódio, apareceu já morta. O que ela estava fazendo nesta série? A resposta é fácil: para unir as histórias das crianças e dos adolescentes, o monstro convenientemente rapta um de cada grupo de amigos. Essa solução é tão fraca e banal que os criadores nem se interessaram em dar mais atenção a ela. Will sobrevive e Barb já era. Ninguém sofre muito com sua morte, nem a amiga que estava empenhada em encontrá-la.
Aliás, ninguém nem se importa tanto com a descoberta de uma outra realidade: o Mundo Invertido.
Regresso
Um crítico não deve impor o filme que ele queria ter visto sobre o filme que ele de fato viu, então não seria justo eu dizer que “Stranger Things” deveria ter aproveitado mais os personagens de Barb e Will. Que deveria dar motivações à Eleven e o Monstro. Que os agentes do governo deveriam ter alguma função interessante exceto serem um bando de bicho-papão. Que tivesse uma exploração mais interessante do Mundo Invertido.
Mas eu não sou crítico de cinema. E isso aqui é uma coluna, espaço próprio para opiniões, sem objetividade. Então tentei combater a histeria coletiva que virou “Stranger Things”. E eu entendo por que ela existe. Quem era criança 30 atrás hoje é adulto. Os roteiristas com 40 anos hoje começaram suas histórias de amor com os trabalhos que a série homenageia. O problema é que, neste caso, em vez de passar tempo vendo o glossário, melhor seria uma maratona de “E.T.”, “Os Goonies”, “Conta Comigo” e “Alien”.
Sério mesmo, é só assistir esses três minutos e se lembrar da emoção de ver personagens que são mais do que referências interagindo: