Brasília é destino, é ausência, é mistério, é busca de sentido
Nós, brasilienses, temos de nos inventar todos os dias, porque nascemos há muito pouco tempo e ainda não sabemos direito quem somos
atualizado
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Essa cidade é mesmo sem par no mundo. Somos todos desgarrados de um lugar original, mesmo os que aqui nasceram. Há em nós, como certidão de nascimento, um sentido de ausência, de busca, de estranhamento que há em todo ser humano, mas em Brasília esse sentimento é cotidiano, contínuo, inescapável.
Brasília nos provoca o tempo todo, seja por seu desenho insólito, seja porque nos trouxe dos lugares mais diversos para que a gente aqui tivesse de reaprender a viver.
Brasília é destino e um destino que nasceu do que de melhor a espécie humana é capaz – de sonhar, de projetar e de construir um jeito melhor de viver e de conviver, de habitar a natureza e a cultura, o céu e o Itamaraty, a noite e a Igrejinha, a madrugada e o Eixão, o cerrado e o Parque da Cidade.
Brasília é busca de sentido, essa condenação de todos os humanos. Uns, buscam o sentido com afirmação, com a pulsão de vida. Outros, com a destruição, a pulsão de morte.
Brasília é a vitória da vida, da democracia, da alteridade, do sonho. Se nós, brasileiros, construímos Brasília, podemos construir simbolicamente outras tantas, reafirmando em cada uma o sentido original.
Brasília é a prova concreta de que somos um país possível, alegre, solidário, inventivo, amoroso.
Brasília é concreta e abstrata, é inspiração e trabalho, é coragem e fé. É a soma das esperanças. E precisamos muito de tudo isso nessa hora tão grave.
Autora do que considero o melhor texto já escrito sobre Brasília, Clarice Lispector escreveu:
Os dois arquitetos (Lucio e Oscar) não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.
É o grande mistério da vida e os homenageados pela deputada distrital Arlete Sampaio (PT-DF) fazem da própria vida a revelação afirmativa do mistério. Afirmar a vida e abominar a destruição é a lida diária de professores, pensadores, arquitetos, fotógrafos, jornalistas, músicos, mestres da cultura popular, cada um no seu quadrado e todos eles num quadrado maior, um quadrado-quadrilátero que até na forma geográfica se diferencia abruptamente das demais unidades da Federação.
Um lugar artificial, projetado no papel, a partir do nada, e que por isso mesmo precisa de muito mais potência de vida que os demais. Nós, brasilienses, temos de nos inventar todos os dias, porque nascemos há muito pouco tempo e ainda não sabemos direito quem somos. Mas somos.
- Boa parte dessa crônica foi lida durante a cerimônia de entrega da Moção de Louvor a 20 brasilienses pela contribuição de cada um em defesa da preservação de Brasília:Alexandre Ribondi, Benny Shvarsberg, Beth Ernest Dias, Conceição Freitas, Edileuza Fernandes da Silva, Erasto Fortes Mendonça, Frederico de Holanda, Hélio Doyle, Jaime Ernest Dias, José Carlos Coutinho, José Leme Galvão Júnior (Soneca), José Roberto Bassul, Luis Jungmann Girafa, Márcia Acioli, Maria Sena, Martinha do Coco, Nilson Rodrigues, Silvio Cavalcante, Tico Magalhães, Wagner Pacheco Barja e Zuleika de Souza.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.