A Holanda de 1974, o Barcelona dos anos 1990 e o legado de Cruyff
Ex-jogador e ex-técnico de futebol, o mestre holandês modificou profundamente a maneira de se praticar e de se enxergar o seu esporte
atualizado
Compartilhar notícia
De raras pessoas podemos dizer que revolucionaram seu campo de atuação. Ao longo do século 20, Johan Cruyff foi uma dessas pessoas. No breve período de uma carreira profissional, de uma vida, Johan Cruyff revolucionou o futebol. E não apenas uma, mas duas, três vezes.
Johan Cruyff, morto aos 68 anos na quinta-feira, colocou a pequenina Holanda no mapa do futebol mundial. Vestindo a hoje imortal camisa 14 laranjinha, era Cruyff dentro de campo o líder técnico, tático e anímico do pensamento do treinador Rinus Michels. No curto intervalo de tempo de uma Copa do Mundo, três semanas, meia dúzia de jogos, a Seleção Holandesa de 1974 mudou para sempre a dinâmica deste esporte.
O conceito de Michels era elementar em sua essência. Pois se a bola é o coração de uma partida, o motivo para tudo estar ali, seus homens precisavam ficar o mais perto possível dela. De tal modo que o time holandês se movia dentro de campo em bloco, como uma massa inteiriça, sem que cada atleta necessariamente guardasse posição. Para passar da intenção ao gesto, para fazer essa ideia de jogo funcionar assim ligeiro dentro de um torneio de tiro curto como uma Copa do Mundo, Michels dizia que foi fundamental contar com jogadores inteligentes e hábeis como Rob Rensenbrink, Johan Neeskens e Cruyff.
Se hoje o futebol moderno pressupõe fundamentos como ocupação de território, compactação de linhas de defesa e de armação, movimentação constante sem bola e triangulação de jogadores com a posse de bola, tudo, tudo isso vem da chamada Laranja Mecânica, a Seleção Holandesa de 1974, um time que não ganhou o Mundial. Ganhou apenas corações e mentes de, ao menos, um par de gerações. Esse era o “futebol total”, de Michels & Cruyff.
Essa foi a primeira revolução de Johan Cruyff.
Entre a segunda metade dos anos 1960 e a primeira metade dos anos 1970, época de mudanças profundas não apenas nos conceitos teóricos e táticos do futebol mas também na fisiologia e na medicina esportivas, o Ajax de Cruyff se tornaria um dos principais clubes europeus, vencendo oito vezes o campeonato nacional e três vezes o campeonato continental.
Enquanto isso, o Barcelona vinha numa draga danada. Uma seca de títulos de doze, treze anos. Foi quando o clube da Catalunha moveu fundos até então inéditos por ali e levou Johan Cruyff embora de Amsterdã após exata uma década no time profissional do Ajax. Cruyff vestiu a camisa grená por seis temporadas como jogador, mas sua segunda revolução desta vez se daria à beira de campo.
Após encerrar a carreira de atleta, Cruyff assumiu o comando técnico do Barcelona. Esteve à frente do time entre 1988 e 1996. Nesse período, implantou um sistema de jogo, mais ainda, implantou um pensamento, uma filosofia de jogo que não apenas dura até hoje como se tornou a esta altura a segunda natureza daquele clube.
A revolução física e tática da Laranja Mecânica era algo possível de ser reproduzido e mantido pelas equipes cotidianas apenas em pequenos intervalos de tempo dentro de uma partida, tamanha a demanda que a plena movimentação do futebol total impunha aos jogadores em campo.
O mesmo conceito de Michels, no entanto, levou Cruyff a um segundo momento. Se a bola é o coração de uma partida, novamente, vamos mantê-la aqui conosco o máximo possível. A posse de bola como expressão não apenas de domínio territorial e ímpeto ofensivo, mas também como uma sofisticada engrenagem defensiva. Pois se aqui estamos com a bola, o adversário não pode nos acuar, não pode nos fazer mal.
Essa foi a segunda revolução de Johan Cruyff.
Cruyff era o treinador daquele Barcelona de 1993/1994 com Romário e Hristo Stoichkov. Quando a saúde declinante cobrou dele mais tempo e mais distância do dia a dia atribulado do esporte profissional, Cruyff deu uns passos para trás, assumiu cargos de coordenação no clube e lentamente foi se afastando, sem jamais perder influência e sem nunca ter visto os times subsequentes do Barcelona contradizerem suas ideias ali deixadas.
Ainda podia se sentir o cheiro de Cruyff naquele Barcelona de Deco, Ronaldinho Gaúcho e Samuel Eto’o no início dos anos 2000 sob direção do holandês Frank Rijkaard. Ainda podia se sentir ares de Cruyff no tiki-taka de Pep Guardiola e mesmo neste atual e encantador Barça de Lionel Messi, Luisito Suárez e Neymar Jr. Pode-se dizer que Cruyff fez o Barcelona ter este tamanho todo que tem hoje. E mais…
Se atualmente os treinadores são cobrados por fazerem sua equipe se movimentar e jogar próxima e se atualmente os scouts de uma partida conferem tanto peso para a posse de bola quanto para os arremates a gol, significa então que Cruyff não mudou apenas a maneira de se jogar o futebol. Ele mudou também a maneira de se enxergar o futebol.
Essa foi a terceira e definitiva revolução de Johan Cruyff.