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A psicóloga Celina Maria Schmitt Rosa Lamb pegou o vírus da pólio aos 6 meses de vida em Santana do Livramento, no interior do Rio Grande do Sul. Quase sete décadas depois, ela ainda enfrenta dificuldades diárias provocadas pela paralisia infantil.
Celina sofre para subir escadas, quando vai ao supermercado sozinha ou precisa usar o transporte público. A moradora do Distrito Federal nasceu em 1954, um ano antes da vacina contra pólio chegar ao Brasil.
“Morava no interior do Rio Grande do Sul. Quando peguei, os médicos achavam que era só uma infecção intestinal”, conta. Enquanto o diagnóstico não veio, o vírus agiu e impediu a menina Celina de dar os primeiros passos.
Em busca de atendimento especializado, ela e a família mudaram para o Rio de Janeiro. Entre a infância e a adolescência, Celina passou por sete intervenções cirúrgicas, que incluíram a colocação de próteses nos membros encurtados e procedimentos para o fortalecimento dos músculos.
De doença temida a mal esquecido
A poliomielite, também conhecida como paralisia infantil, já foi uma das doenças mais temidas do mundo. Era absolutamente assustador ver crianças ativas deixarem de andar de um dia para outro. As vítimas da pólio eram identificadas imediatamente nas ruas ou escolas quando apareciam mancando ou apoiadas em muletas.
No Brasil, foram registrados 26.827 casos de poliomelite entre 1968 e 1989, ano em que a última criança foi diagnosticada com a doença. Não há informações oficiais sobre surtos anteriores.
A poliomielite é uma doença contagiosa causada pelo poliovírus. Ele pode infectar crianças e adultos por meio do contato direto com fezes ou por secreções eliminadas pela boca de doentes. A maioria dos casos resulta em quadros leves, com febre, mal-estar, diarreia e dor de cabeça, assim como acontece em outras doenças virais.
No entanto, cerca de uma a cada 200 infecções evolui para o pesadelo. Nesses casos, o vírus atinge a corrente sanguínea e, de lá, pode chegar ao cérebro. Se isso acontece, a infecção traz danos para o sistema nervoso central, levando a algum grau de paralisia irreversível.
“A criança vai dormir bem e acorda no dia seguinte sem mexer a perninha. Geralmente começa nos membros inferiores e é ascendente, podendo chegar até os músculos respiratórios”, explica o pediatra Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
A nutricionista Giullyane Lemes Bittencourt, 53 anos, foi uma das que apresentou a forma mais grave da doença. Ela foi diagnosticada com paralisia infantil aos 11 meses de idade, quando já andava para cima e para baixo pela casa em que vivia com a família em Goiânia (GO). Em seu prontuário consta que ela não tomou a última das três doses da vacina.
“Minha mãe diz que desmoronei como um saco de batata. Estava de pé e perdi completamente a força nas pernas. De repente, veio uma febre muito alta”, recorda.
Os meses seguintes foram vividos dentro de uma unidade de terapia intensiva (UTI). No caso de Giullyane, até os pulmões ficaram paralisados. Ela foi uma das crianças que precisou usar um aparelho conhecido como pulmão de aço, um ventilador que auxiliava as funções respiratórias das vítimas da pólio.
Aos 2 anos de idade, Giullyane e a família se mudaram para Brasília, onde a menina iniciou um tratamento de reabilitação especializado na Rede Sarah de Hospitais. Nos primeiros anos, o acompanhamento era quase que diário, com fisioterapia, atividades na água e ajustes das órteses nas pernas.
À medida que a menina crescia, novos desafios surgiam. “A primeira recordação que tenho de dificuldade ocorreu no jardim de infância. Era a hora do recreio, e as meninas iam brincar de roda. Lembro de estar junto delas porque minha mãe me segurava no colo e eu ficava com as mãos livres. Ela ia todo dia na hora do recreio”, recorda.
Esforços coletivos, medidas de vigilância epidemiológica e campanhas de vacinação levaram o Brasil para um cenário bem mais favorável no fim da década de 1980. O personagem Zé Gotinha é dessa época; ele foi criado em 1986 para convencer os pais e as crianças a aderirem à imunização.
O êxito da campanha contra a pólio foi tamanho que, hoje, a doença praticamente não é lembrada pelas novas gerações. Muitos pais de filhos pequenos não conviveram com crianças que tiveram pólio e, por isso, não têm tanta preocupação com a carteira de vacinação de seus bebês.
A cobertura vacinal contra a poliomelite vem caindo desde 2016, o que preocupa pediatras e especialistas em epidemiologia. Atualmente, ela está em 77,2%, mas o ideal é que alcance 95% das crianças com menos de 5 anos.
A queda na cobertura vacinal colocou o Brasil em uma situação de vulnerabilidade. Em 2021, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS), classificou o país como uma área de risco para a reintrodução do póliovírus.
“É irônico, mas o sucesso da própria vacina pode ter sido o motivo da queda da cobertura. A baixa percepção de risco das pessoas mais jovens é uma das razões, somada a uma onda negacionista recente contra os imunizantes”, considera a chefe de Saúde, Nutrição e HIV/Aids do Unicef no Brasil, Luciana Phebo.
A especialista da Unicef lembra que na pandemia houve uma onda de fake news antivacina, que minou a credibilidade dos imunizantes. “Quando a cobertura vacinal está baixa, a proteção coletiva fica enfraquecida e a reintrodução do vírus pode acontecer a qualquer momento”, alerta.
Não existe medicamento antiviral para o tratamento da fase aguda da poliomielite, ou seja, os médicos ainda não são capazes de evitar a progressão da doença. A vacinação ainda é a única forma de se proteger.
O Programa Nacional de Imunizações (PNI) prevê que todas as crianças menores de 5 anos de idade recebam três doses da vacina injetável (VIP) aos 2, 4 e 6 meses de vida e mais duas doses de reforço com a vacina oral (VOP), a gotinha, aos 15 meses e 4 anos de idade.
A partir de 2024, o Ministério da Saúde vai substituir gradualmente os dois reforços da vacina oral por uma dose a mais da vacina injetável aos 15 meses, completando assim o ciclo de imunização contra pólio.
“Após um período de transição, que começa no primeiro semestre de 2024, as crianças brasileiras que completarem as três primeiras doses da vacina irão tomar apenas um reforço com a VIP (injetável) aos 15 meses”, afirma a pasta em nota enviada ao Metrópoles.
A decisão aprovada pela Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização (CTAI) segue a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que todos os países interrompam o uso da gotinha. Os Estados Unidos e os países europeus não usam a VOP há mais de uma década.
Necessidade de reabilitação contínua
O servidor público Mário Sérgio Rodrigues Ananias, 66 anos, foi diagnosticado com paralisia infantil aos 6 meses de idade, depois de apresentar febre alta, dor e incapacidade de movimentar as pernas. A doença chegou perto do Natal. “Talvez por isso a data não me seja muito aprazível”, conta.
No hospital, a mãe escutou que não havia muito a se fazer, apenas cuidar do filho para que ele tivesse alguma qualidade de vida. O mineiro andou pela primeira vez sem a ajuda de bengalas ou outros aparelhos aos 4 anos.
Quando criança, ele usava instrumentos de correção ortopédica nas duas pernas, uma cinta pélvica e duas bengalas. Eram equipamentos desconfortáveis, que causavam feridas na cintura e na virilha.
Um dia Mário Sérgio se cansou. Passou a caminhar usando as mãos como apoio para firmar os joelhos. Aos 17 anos, voltou a aceitar a bengala, pois queria mais autonomia.
“A poliomielite é como um casamento, é para a vida inteira. Ou melhor, é um pouco mais porque é irreversível, não tem divórcio, nem desquite. As sequelas são para o resto da vida. Hoje convivo com dor de manhã, de tarde e de noite”, compara Mário.
Ele dedica parte do seu tempo a ações de conscientização sobre a paralisia infantil, e, em 2023, lançou o livro Sobre Viver com Pólio, onde conta sua trajetória com a doença.
Embora Giullyane, Celina e Mário não se conheçam, as histórias dos três se cruzam em um mesmo lugar: na Rede Sarah de Hospitais, no Distrito Federal.
O hospital se tornou referência no tratamento da paralisia infantil, atraindo famílias de todo o Brasil em busca de atendimento ortopédico especializado para crianças.
Cerca de 7 mil pacientes da Rede Sarah são atendidos por conta da paralisia infantil decorrente da poliomelite. Desse total, 3.132 estão concentrados na capital federal. Em seguida aparecem Salvador (1.692), Belo Horizonte (1.312), São Luiz (687), Fortaleza (104), Rio de Janeiro (40), Belém (32) e Macapá (5).
No caso das vítimas da poliomelite, que hoje são adultos com muitos anos de convivência com limitações, o trabalho é multidisciplinar. Consiste no manejo da dor, na atualização das órteses, no fortalecimento muscular e no acompanhamento psicológico.
“São pacientes que apresentam muitas complicações ao longo da vida: terão de tratar as consequências da paralisia infantil até os 50, 60, 70 anos”, afirma a neurocientista Lúcia Willadino Braga, presidente da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação.
De acordo com o ortopedista Álvaro Massao Nomura, vice-presidente da Rede Sarah, o foco do tratamento é deixar o paciente confortável dentro das limitações, incentivando sua capacidade e autonomia.
Como não repetir o passado
Os casos mais recentes de paralisia infantil causada pelo poliovírus foram identificados no Afeganistão e no Paquistão. A OMS considera que, enquanto houver um infectado, crianças de todos os países correm risco de ter a doença.
Para os especialistas, o combate às fake news e o resgate da confiança da população nos imunizantes é essencial para que as doenças do passado não voltem a nos ameaçar. A comunicação sobre o assunto precisa ser feita com mensagens claras e compreensíveis.
Além disso, facilitar o acesso da população à vacinação também é considerado fundamental para aumentar a cobertura, bem como envolver agentes políticos diversos no objetivo.
“A busca ativa das crianças não vacinadas ou com a vacinação atrasada deve ser feita junto com os profissionais de educação e de assistência social, em redes de estados e municípios ”, aponta Luciana Phebo, da Unicef.
O pediatra Renato Kfouri também alerta para a necessidade de maior envolvimento da comunidade médica. Segundo ele, no quadro atual, com a imunização em queda, é necessário que os profissionais de saúde estejam ainda mais atentos na conclusão dos diagnósticos de paralisia infantil.
“É preciso investigar oportunamente todos os casos de paralisia aguda flácida em crianças menores de 15 anos. Alguns casos demoram menos para fechar o diagnóstico e afastar a possibilidade de pólio”, considera Kfouri.
Ele também destaca a importância da vigilância ambiental, com o estudo de amostras de esgoto para identificar a presença de vírus em diferentes localidades do país.
“Não vigiamos o ambiente, não investigamos oportunamente os casos de paralisia flácida aguda e não vacinamos bem. Por isso estamos nessa classificação de risco”, afirma o vice-presidente da SBIm.