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atualizado 24/04/2023 18:09
A obesidade é uma doença crônica, multifatorial e complexa. Ela não se desenvolve de um dia para o outro, e também não é resolvida em um estalar de dedos. A ciência considera, inclusive, que não há cura para essa enfermidade. Durante toda a vida, o paciente precisará vigiar a balança e lidar com os efeitos causados pela gordura extra.
Mas por que comemos tanto e tão mal? O que explica a diferença de sensações entre comer uma pizza e uma salada? E, apesar de a sociedade reforçar que a perda de peso é apenas uma questão de força de vontade, qual é a importância das emoções na escolha do que comer e de qual quantidade colocar no prato?
O acúmulo de gordura suficiente para desencadear problemas de saúde é uma das condições mais prevalentes no mundo, mas ainda estamos entendendo como a obesidade opera e o que leva a ela. Apesar do atraso, pesquisadores já começam a apontar os principais culpados: o maior deles é o consumo de alimentos ultraprocessados e ricos em açúcar, sódio, gordura e uma longa lista de conservantes.
Além de prejudicarem o funcionamento do organismo, ao desenvolverem doenças como diabetes e hipertensão, os alimentos supercalóricos também agem no cérebro, desencadeando um sistema viciante de recompensa. Quanto mais comemos, mais felizes ficamos. Mas a que custo?
Por exemplo: quando comemos um brigadeiro – docinho tradicional feito com leite condensado (uma combinação de açúcar com gordura) –, o organismo imediatamente passa por uma reação em cadeia. O pâncreas produz e excreta insulina, hormônio essencial para o processamento de açúcares, que é transportado para o cérebro. Lá, a substância estimula alguns neurônios específicos que produzem a dopamina.
Esse neurotransmissor, por sua vez, é conhecido como o hormônio da felicidade, pois ativa uma série de circuitos cerebrais que afetam as emoções. Ao comer o docinho, portanto, somos tomados por bons sentimentos de recompensa; assim, fica difícil consumir um só.
De acordo com um estudo feito por cientistas da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e publicado em março de 2023, comer açúcar e gordura em excesso altera os circuitos de recompensa do cérebro, o que praticamente induz ao vício nesse tipo de alimento. Em um cenário assim, é complicado se apoiar somente na força de vontade.
Em 2019, uma pesquisa publicada na revista científica Journal of Clinical Investigation mostrou que pessoas que comem muitos alimentos ricos em açúcar e gordura nem sequer conseguem apreciar comidas mais saudáveis. Eles também tiveram níveis maiores de substâncias que inibem a ação do hormônio da saciedade. Por isso, comem muito mais do que precisam – o que, na maioria dos casos, leva à obesidade. Esse mecanismo é semelhante ao que acontece com uma pessoa viciada em drogas, por exemplo.
A explicação pode ter milhares de anos. Os cientistas que estudam o assunto acreditam que os homens das cavernas tinham um paladar que priorizava alimentos mais calóricos, visto que era necessário estocar gordura e energia. Como não era possível saber quando seria a próxima refeição, era essencial manter o funcionamento do organismo até lá.
Atualmente, esse recurso não é mais útil, já que vivemos em um cenário de fartura de opções alimentares; muitas delas estão no celular, a poucos cliques de distância. Nossos cérebros, porém, ainda não estão habituados a esse novo contexto, por isso continuamos dando preferência aos alimentos ultraprocessados e cheios de calorias.
Os alimentos gordurosos e cheios de açúcar provocam ainda disbiose intestinal – um desequilíbrio da microbiota do órgão, que estimula a produção de toxinas que vão para o sangue e chegam à cabeça. Lá, as substâncias provocam inflamação no cérebro, o que influencia algumas funções do órgão e altera o ciclo de sono e vigília.
Além de termos de lidar com os efeitos da alimentação no organismo, que tende a querer o que causa acúmulo de peso e desencadeia problemas de saúde, a ciência também já descobriu que existem cerca de 200 genes comprovadamente associados à obesidade.
“Sabemos que 70% da chance de ganho de peso é genética, e cerca de 80% dos genes associados à obesidade estão no cérebro. Com isso, o paciente tem mais fome, mais impulsividade, mais dificuldade de resistir às tentações. Ter esses genes não depende de escolhas das pessoas”, explica o endocrinologista Bruno Halpern, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso).
Ele cita uma pesquisa com gêmeos idênticos separados no nascimento, em um estudo que comprova a importância do fator genético na obesidade. Os resultados mostraram que os dois normalmente têm pesos semelhantes na vida adulta, apesar de não terem vivido a mesma rotina ao longo dos anos.
Outro estudo, publicado por cientistas americanos em 1986, analisou o registro de pessoas adotadas e comparou a altura e o peso dos indivíduos aos dos pais naturais e adotivos. Quando o casal que gerou a criança era obeso, 80% dos filhos também desenvolvia a doença na vida adulta. Quando os pais naturais tinham peso considerado normal, apenas 14% dos descendentes desenvolveram obesidade, independentemente da dieta que seguiam.
Quando o prato está cheio de opções gordurosas e muito doces, o corpo está ativamente lutando para manter o indivíduo na dieta pouco saudável. O fator psicológico também tem sua parcela de culpa, apesar de menos do que diz o senso comum.
O psiquiatra Adriano Segal, coordenador da Comissão de Psiquiatria e Transtornos Alimentares da Abeso, explica que, até onde sabemos, as emoções não são as principais culpadas pelo consumo desenfreado de comida.
Ele conta que, inclusive, não é a maior parte dos pacientes que têm compulsão alimentar. Habitualmente, nos casos de obesidade menos grave, o transtorno tem cerca de 6% de prevalência. Em quadros mais sérios, pode chegar a 50%.
Embora a maioria das pessoas aparentem tê-lo, o diagnóstico de compulsão alimentar exige que o episódio ocorra pelo menos uma vez por semana durante três meses e que o paciente se sinta sem controle sobre a própria alimentação. Além disso, o indivíduo deve ter pelo menos três dos seguintes sintomas: comer mais rápido do que o normal; até que se sinta desconfortável de tão cheio; ingerir quantidades enormes de comida, mesmo sem se sentir com fome; comer escondido, por vergonha; e sentir náuseas, depressão ou culpa depois de um episódio.
Ao contrário da bulimia nervosa, a pessoa com compulsão alimentar não tem comportamentos compensatórios, como vômitos autoinduzidos, uso de laxantes ou diuréticos, exercícios em excesso ou longos períodos de jejum.
Outras condições psíquicas também podem estar relacionadas ao sobrepeso, incluindo a depressão e a ansiedade. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 30% dos obesos que procuram tratamentos para emagrecer têm depressão em algum momento da vida. A ciência ainda não sabe se uma condição desencadeia o desenvolvimento da outra, ou se estão ligadas de alguma maneira.
“Mas já está comprovado que ter um diagnóstico psiquiátrico é um fator que atrapalha o tratamento de qualquer doença crônica. O paciente não consegue aderir às propostas de terapia com tanto sucesso. Por outro lado, alguns medicamentos podem causar ganho de peso. Sempre que possível, deve-se escolher a opção que provoca menos problemas, e associá-la ao tratamento de obesidade”, explica o psiquiatra.
A doutora em psicologia Fernanda Gonçalves, professora da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, considera que o aspecto psicológico que desencadeia um comportamento compulsivo na hora de comer é um fenômeno de múltiplas origens.
Estudos publicados mostram que, além de ser comum usar a comida como compensação por um dia difícil, existem muitos casos desencadeados por eventos de violência no corpo durante a vida. Indivíduos que foram abusados sexualmente, por exemplo, podem ter um desejo muito forte de esconder as formas do corpo, por isso exageram na comida e, consequentemente, acumulam gordura.
“É importante entender que não é uma escolha. A existência da obesidade não é fraqueza ou falta de vontade. Existem demandas psíquicas que demandam acompanhamento especializado. Ainda que a queixa primária seja a obesidade, em muitos casos, outros fatores levaram à condição. Cada pessoa percorre um caminho diferente”, lembra. Nos casos de obesidade grau III, o mais grave, é mais comum que o paciente precise de acompanhamento psiquiátrico e psicológico.
Segal completa lembrando que, infelizmente, não é só a população que ainda acha que a cura da obesidade depende apenas da capacidade de resistir às tentações. Segundo ele, muitos profissionais de saúde ainda têm esse tipo de preconceito, o que acaba causando maus-tratos no nível de relacionamento com o paciente obeso. “Não é só querer, só se controlar. Não é nada disso. Precisamos desmistificar essa noção”, alerta.
“Para a sociedade, a obesidade ainda é uma doença tratada apenas clinicamente, com nutricionista e educador físico. Lida-se só com o corpo, por isso temos tantos casos de efeito sanfona. Quando a motivação se extingue, se o paciente tem uma queixa psicológica, o trauma de fundo permanece e a tendência é voltar ao sobrepeso. Ele se sente cada vez mais frustrado e incompetente em lidar com o problema e, de alguma forma, reforça a crença de pouca possibilidade de superação”, afirma Fernanda.
Profissionais de saúde especializados em obesidade – que ainda são poucos – defendem que o tratamento seja multidisciplinar, principalmente em casos mais graves, em que o paciente tem mais quilos a perder. Ou seja, além de dieta, exercícios físicos, uso de medicamentos e investigação de outras questões de saúde (hormonais, por exemplo), é preciso descobrir se há algo em âmbito psicológico ou mental que esteja dificultando ainda mais o processo.
Caso seja diagnosticado um transtorno psiquiátrico, é necessário dar início ao tratamento com medicamentos. Ao mesmo tempo, o acompanhamento psicológico pode ajudar muito, inclusive pacientes que não têm condições identificadas. Fernanda explica que a terapia cognitiva-comportamental costuma ter melhores resultados nesse tipo de intervenção, por ter protocolos mais estruturados e contemporâneos. “Alguns pacientes conseguem ter uma mudança comportamental a partir de pequenos insights“, garante a psicóloga.
Segal defende ainda que, apesar de o exercício físico não ser a grande estrela do processo do emagrecimento, ele é essencial para aumentar a massa muscular, melhorar a comunicação da periferia do corpo com o cérebro, incentivar o aperfeiçoamento da microbiota intestinal e até encorajar a escolha de alimentos mais saudáveis no dia a dia. “É um aspecto central do tratamento”, garante o psiquiatra.
A perda de peso, quando é intencional e bem-conduzida, também está associada a uma melhora de aspectos psiquiátricos, à reversão de algumas doenças, como a diabetes, e à garantia de uma melhor qualidade de vida ao paciente.
Na próxima reportagem, entenda por que a gordofobia atrapalha o tratamento contra a obesidade.