Quem são as vítimas da máfia chinesa que aterrorizava vendedores em SP
Extorsão, ameaças de morte e sequestro fez com que vítimas do Grupo Bitong, ramificação da máfia chinesa, saíssem de SP e do Brasil
atualizado
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São Paulo — A investigação de um assassinato ocorrido em janeiro de 2015 em uma via pública da Sé, no centro de São Paulo, revelou a existência de uma máfia chinesa atuando na região mais movimentada da capital paulista.
Identificado nas investigações como Grupo Bitong, que seria uma ramificação da máfia em São Paulo, a organização tem como alvo chineses que atuam, principalmente, no comércio de produtos importados em centros comerciais populares, como a 25 de Março e o Brás.
Uma investigação da Polícia Civil e do Ministério Público (MPSP) mostrou que o Grupo Bitong é responsável por extorquir, ameaçar, sequestrar e matar chineses no centro de São Paulo.
Relatos de testemunhas apontam que a organização cobra altas quantias em dinheiro para permitir que esses comerciantes continuem atuando em seus negócios. Caso não aceitem o acordo, são mortos.
O Metrópoles já mostrou o caso de homicídio na Sé e também o de um assassinato cometido no bairro da Liberdade, em dezembro de 2016, na saída de um karaokê. Nas duas ocasiões, as vítimas foram assassinadas porque se recusaram a continuar cedendo às extorsões.
A reportagem teve acesso a detalhes da investigação que apura as ações do Grupo Bitong. O MPSP transcreveu o depoimento de ao menos 12 vítimas da organização criminosa, que são identificadas com codinomes para preservar suas identidades, e relataram casos ocorridos entre 2014 e 2017.
O que disseram as vítimas da máfia chinesa
A primeira vítima a aparecer na investigação, identificada como Alpha, relatou em depoimento que foi informada pelo próprio Liu Bitong (foto em destaque, no centro), apontado como líder do grupo e preso pela Polícia Federal (PF) em Roraima, em 16 de dezembro, que ele era o novo chefe da organização, após morte do antecessor. A partir dali, disse a vítima, começaram as extorsões.
Alpha, que trabalhava com o comércio de importados, foi obrigado a pagar R$ 60 mil por cada container de mercadoria, caso contrário estaria proibido de manter seus negócios e teria de retornar à China. Entre 2014 e 2015, a vítima pagou por sete containers, o que totalizou R$ 420 mil. Todos os pagamentos foram feitos em espécie (dinheiro vivo).
Em abril de 2016, Alpha procurou o líder para dizer que não tinha mais dinheiro para continuar efetuando os pagamentos. Em seguida, um dos matadores do grupo ameaçou sequestrar e matar sua família. Por isso, parou de importar produtos e voltou para a China em outubro daquele ano.
A vítima retornou ao Brasil apenas quando foi informada de que várias pessoas estavam se reunindo para denunciar a máfia chinesa à polícia paulista.
Segundo o depoimento, Alpha “informou que não conhece outra máfia, além da de Liu Bitong”, e que conhece outras vítimas e os réus “porque todos são da mesma região [Fujian, na China], mas que não possuem amizade ou inimizade”.
“Taxa de proteção”
Outra vítima protegida, identificada como Beta, disse em depoimento que chegou ao Brasil em 2011 e passou a ser alvo de extorsão em 2016. Bo Lin, considerado o matador mais violento do Grupo Bitong, teria exigido dele R$ 30 mil – caso não pagasse, seria agredido.
A vítima pagou o valor e deixou o estado de São Paulo por medo das ameaças que sofreu, conforme seu depoimento.
Delta, outra vítima protegida, disse no seu relato à polícia que chegou ao Brasil em 2011 e que tinha um restaurante na 25 de Março. Em 2016, Liu Bitong lhe exigiu o valor de R$ 100 mil. No mês seguinte, o grupo exigiu R$ 30 mil por mês como “proteção”.
Delta não cedeu à extorsão e também deixou o estado de São Paulo. Sua esposa ficou e continuou administrando o restaurante. Os membros do Grupo Bitong retornaram ao estabelecimento e exigiram R$ 100 mil, segundo relatou. Caso contrário, sequestrariam o filho do casal. Depois das ameaças, a família fechou o restaurante e voltou para a China.
Outra vítima, identificada como Eco, relatou que veio morar no Brasil em 2008 e, em 2016, após ser ameaçado de morte, pagou ao grupo o valor de R$ 85 mil. Ele pagou mais R$ 25 mil para impedir o sequestro de seus filhos.
“Por não ter mais dinheiro, mandou um de seus filhos para a China e outro para fora de São Paulo. Depois que seus filhos foram embora, o chamaram no escritório e Bo Lin e Shuyuan Wang [matadores], retiveram seus documentos e disseram que apenas os devolveriam quando entregasse o dinheiro. Como não pagou mais nada, seus documentos não foram devolvidos”, diz trecho da investigação, obtido pelo Metrópoles.
Irmão sequestrado
Outra vítima, identificada como Fox, disse em depoimento que Liu Bitong lhe ligou em março de 2014 exigindo R$ 300 mil, caso contrário sequestraria alguém da sua família. Ele não efetuou o pagamento e levou os filhos de volta para a China, retornando ao Brasil em julho daquele ano.
Fox retornou ao país junto com seu irmão, que foi sequestrado assim que chegou no aeroporto. A vítima pagou R$ 300 mil pela soltura do irmão.
Assim como Alpha, Fox declarou que conhecia Liu Bitong e um matador do grupo “pois eles eram todos do mesmo vilarejo na China”. A vítima disse, ainda, que “todos na região da rua 25 de Março sabem quem são os membros da organização criminosa”.
Kilo, irmão de Fox sequestrado pelo Grupo Bitong, também prestou depoimento. No testemunho, a vítima declarou ter passado cinco horas na mão dos sequestradores, tendo sido fisicamente agredido, inclusive por Liu Bitong.
Na época do depoimento, em meados de 2017, Kilo afirmou que morava na China e tinha retornado ao Brasil para ir à delegacia denunciar a máfia porque o irmão pediu.
Golf é outra vítima do Grupo Bitong. Ele narrou em depoimento que chegou ao Brasil em 2007 e, dois anos antes de seu testemunho, em torno de 2015, foi extorquido por Bo Lin. O matador exigiu R$ 300 mil para não fazer nada ao filho do comerciante. O valor foi pago em duas parcelas.
A vítima também disse em depoimento que conhece os acusados porque moravam no mesmo vilarejo na China. Ele falou, ainda que, após pagar o valor exigido, fugiu por medo do grupo.
A oitava vítima, identificada como Hotel, também chegou ao Brasil em 2007, mas só foi vítima de extorsão em 2016, conforme disse em depoimento. Ele pagou R$ 80 mil ao Grupo Bitong após exigência para continuar vendendo películas de celular.
O valor foi pago em dinheiro e entregue no escritório da máfia chinesa, em um apartamento na Rua Senador Queiroz, no centro de São Paulo.
A vítima protegida identificada como India declarou à investigação que, em 2015, duas pessoas do grupo criminoso foram até sua loja e de seu cunhado, a vítima identificada como November, exigir o pagamento de R$ 50 mil. Por não ter o dinheiro, os acusados teriam roubado mercadorias no valor de R$ 55 mil.
Eles retornaram à loja em outubro de 2016, dessa vez exigindo R$ 600 mil em dinheiro. O valor foi pago em três parcelas, com ajuda de parentes e amigos.
“Narrou que conhece os réus, pois são todos do mesmo ‘condado’ e ainda todos são da ‘25 de Março’, mas não tinha relação de amizade ou inimizade. Disse que seu cunhado depois de todo ocorrido foi embora para China e morre de medo de voltar para o Brasil, mas que veio para a audiência”, diz trecho da investigação sobre o depoimento de India.
Em seu depoimento, November afirma que pagou de R$ 600 mil a R$ 700 mil à máfia chinesa, e que as extorsões teriam começado em 2014. Segundo seu depoimento, foi ele quem escreveu diversas cartas ao Consulado Chinês denunciando os crimes cometidos no Brasil. O Metrópoles mostrou que o órgão aconselhou as vítimas a prestarem queixa sobre os crimes.
Juliet, outra vítima protegida, relatou em depoimento ter chegado ao Brasil em 2008 e ter sido vítima de extorsão em 2016. Naquele ano, precisou pagar R$ 150 mil ao Grupo Bitong para os criminosos deixarem sua família em paz.
O marido de Juliet chegou a ir embora para a China com medo da associação criminosa. A vítima, no entanto, foi vizinha e amiga de infância de Liu Bitong na época em que moraram em Fujian. “Em razão da amizade de infância sentia menos medo da ‘máfia’ que seu marido e, por isso, ficou no Brasil”, diz trecho da investigação.
“No Brasil, ele virou esse tipo de pessoa”, disse a vítima em depoimento. Ela teria sido ameaçada uma segunda vez, mas procurou o irmão de Bitong e pediu para cessarem as ameaças, o que teria acontecido.
Na época em que prestou o depoimento, em meados de 2017, Juliet disse que estava mais tranquila e que ainda possuía sua loja de bolsas no mesmo local.
Lima, a última vítima a prestar depoimento, afirmou que começou a ser extorquida pelo Grupo Bitong em agosto de 2014. Na época, Liu Bitong lhe telefonou exigindo o pagamento de R$ 70 mil por cada container que chegasse ao Brasil com suas mercadorias.
De acordo com a declaração da vítima, estes pagamentos ocorreram de 2014 a 2015, totalizando o valor de R$ 700 mil.
Somado, o montante recolhido pelo Grupo Bitong com as extorsões destas 12 vítimas, feitas entre 2014 e 2017, passa de R$ 2,7 milhões de reais.
O que disseram os acusados
Em juízo, 11 dos réus acusados de pertencerem ao Grupo Bitong negaram participação nos crimes. O líder, Liu Bitong, não foi ouvido pois já estava foragido da Justiça à época.
Os outros membros, responsáveis pelas ameaças e recolhimento e contagem do dinheiro, afirmaram que não sabiam o motivo pelo qual haviam sido presos.
Eles admitiram a existência de uma máfia chinesa, mas acusaram as testemunhas que denunciaram os crimes de fazerem parte da associação criminosa.
O homem escolhido pelo Consulado Chinês em São Paulo para ser intérprete das vítimas, identificado como Zhu Ming Wen, é apontado pelos réus como o líder do grupo criminoso.
Eles afirmam que Zhu Ming cobra valores de entrada para todos os chineses que chegam ao Brasil e que traz imigrantes de forma ilegal ao país.
Bo Lin, matador do Grupo Bitong que soma mais de 180 anos de prisão em penas, afirmou “não ter inimigos, mas que pagou à testemunha Zhu Ming Wen, líder da máfia chinesa denominada Futin Ban, uma taxa de proteção que é paga por todos os chineses da região de Fujian que chegam ao Brasil”.
A Justiça considerou essa hipótese infundada, e condenou os réus a penas que vão de 17 a 142 anos, por crimes como associação criminosa, extorsão e sequestro. Dois dos 11 denunciados pelo MPSP foram absolvidos, pois a investigação não identificou crime em suas ações que motivasse uma acusação.
Liu Bitong, líder do grupo criminoso, está preso na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista, Roraima, desde 16 de dezembro de 2024, após passar quase oito anos foragido. Ele cumpre pena por homicídio, roubo qualificado, extorsão, extorsão mediante sequestro e organização criminosa. Informações da PF apontam que o criminoso teria passado três anos escondido na Venezuela.