Vídeo: “UFC de Rua” dissemina combates clandestinos na periferia de SP
Posto de gasolina, praça e até campo de futebol vira ringue improvisado do UFC de Rua, que promove lutas clandestinas na zona norte de SP
atualizado
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São Paulo — Dois jovens se encaram mano a mano rodeados por uma multidão eufórica. Eles tocam as luvas, como fazem os lutadores profissionais, antes de partirem para uma troca desenfreada de socos. Em vez do octógono, o ringue é improvisado em um posto de gasolina. O primeiro golpe certeiro na cabeça derruba um dos desafiantes e inflama a plateia: “Uh! Uh! Uh! Uh! Uh!”
A luta é registrada por dezenas de celulares e logo vai parar nas redes sociais com o slogan “UFC de Rua” ou “UFC da Favela“, uma prática que vem disseminando combates clandestinos entre jovens e até crianças em bairros da periferia de São Paulo. A briga descrita acima ocorreu em um posto na Freguesia do Ó, zona norte da capital, mas há registros de embates feitos no meio da rua, em praças e campo de futebol também na zona leste (assista abaixo).
UFC é a sigla de Ultimate Fighting Championship, maior organização de artes marciais mistas (MMA) do mundo, criada há 30 anos nos Estados Unidos e que se popularizou no Brasil a partir dos anos 2000, com as conquistas de cinturão por vários lutadores brasileiros, como Vitor Belfort, Anderson Silva, Rodrigo Minotauro e José Aldo. No UFC de Rua, a única semelhança com a modalidade original são as luvas, e olhe lá.
Há registros de lutas em vídeo nas quais os “combatentes” trocam socos sem o equipamento ou dividem o mesmo par de luvas. Em alguns casos, os desafiantes têm pesos visivelmente discrepantes, o que não ocorre nas lutas profissionais, além de trocarem socos sobre o concreto ou asfalto, sem nenhum tipo de estrutura para atendimento médico em caso de emergência.
Nos vídeos é possível ver que há sempre uma pessoa que faz a função de juiz da luta, afastando um dos lutadores quando o adversário cai no chão. Às vezes, até mais de um homem invade o espaço do ringue, um deles com o rosto completamente coberto por uma camiseta, como fazem os bandidos que não querem ser identificados pela polícia.
O Metrópoles apurou que ao menos a exibição das lutas do UFC de Rua nas redes sociais é um fenômeno recente. Os registros se concentram no Jardim Iracema, na Freguesia do Ó, Jardim Paulistano e Brasilândia, todos na zona norte. Só na Freguesia do Ó, dois eventos teriam sido realizados na semana passada. As imagens mostram a participação de menores de idade nas brigas, mas não há registros de que elas envolvam apostas em dinheiro.
Procurada pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirmou que o 28º Distrito Policial (Freguesia do Ó) “está ciente dos fatos”, destacando que as lutas “não se enquadram no artigo 129 do Código Penal”, crime de lesão corporal, “pois houve consentimento mútuo das partes envolvidas”. Ainda assim, a pasta afirma que “há diligências em andamento para identificar os participantes da luta”.
“Se algum dos envolvidos sentir que sua integridade física foi comprometida, o 28º DP está à disposição para o registro da ocorrência”, diz a SSP em nota.
“Não são ilegais”
Coronel da reserva da Polícia Militar, Azor Lopes da Silva Júnior, que também é doutor em sociologia e pós-doutor em hermenêutica jurídica, explica que, apesar de “chocantes”, as lutas de rua compartilhadas nos vídeos do UFC de Rua “não são ilegais”, caso não envolvam apostas e não tenham como objetivo único lesionar o oponente.
“Do ponto de vista essencialmente jurídico, não há embate entre as pessoas com o intuito de lesionar, mas competir, segundo regras de um esporte. No caso desses vídeos, por mais que eu os recrimine, queira ou não, são uma prática desportiva, não digo que adequada”, explicou. Ele comparou as lutas a uma “pelada de rua”, que oferece riscos de lesão, mas não conta com “dolo”, ou seja, intenção de machucar.
Nas redes sociais, moradores se dividem sobre as lutas clandestinas. Alguns as apoiam, por acreditarem se tratar de uma prática desportiva, que promove saúde, enquanto outros destacam os riscos à integridade física dos participantes.
Estudos da Faculdade de Medicina da Universidade e São Paulo (FMUSP) mostram que a exposição repetitiva do crânio a pancadas faz com que o cérebro se mova bruscamente na caixa craniana. A reiteração dos traumas, a longo prazo, pode desencadear um processo progressivo e irreversível de sintomas, como, por exemplo, perda de memória, dificuldade de raciocínio, problemas motores como lentidão, rigidez dos músculos, alterações da fala e desequilíbrio.
A longo prazo, lutadores que recebem muitos golpes na cabeça podem desenvolver encefalopatia traumática crônica, a popular “demência do pugilista”, que já acometeu grandes boxeadores brasileiros, como Maguila e Éder Jofre, além do campeão norte-americano Muhammad Ali.
Morte fora de São Paulo
Lutas clandestinas já foram identificadas na região Nordeste do país. Em outubro do ano passado, um jovem chamado João Victor Penha, de 23 anos, morreu em Jericoacoara, no Ceará, após ser nocauteado em um desses combates informais de boxe. Ele foi socado na cabeça durante a luta e caiu no chão desacordado. O jovem foi hospitalizado e permaneceu internado por dois dias, e depois faleceu.