“Sociedades são mais fortes quando inclusivas”, diz diretora da Unesco
Em entrevista ao Metrópoles, Gabriela Ramos defende políticas de ação afirmativa e mais representatividade para enfrentar discriminação
atualizado
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São Paulo — Num mundo em que uma em cada seis pessoas sofre algum tipo de discriminação, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), a solução para enfrentar o problema envolve a priorização do tema, segundo a diretora-geral adjunta da Unesco para Ciências Humanas e Sociais, Gabriela Ramos.
Em entrevista ao Metrópoles, Gabriela afirma que políticas de ação afirmativa e investimentos públicos voltados às comunidades vítimas de racismo e discriminação geram sociedades mais fortes, inclusive do ponto de vista econômico.
“Economias e sociedades são mais fortes quando elas são inclusivas”, disse a diretora-geral, que esteve em São Paulo para a 3ª edição do Fórum Global contra o Racismo e a Discriminação.
Gabriela defendeu que governos e empresas tenham mais atenção com o tema, mas disse que é preciso que as autoridades coloquem a diversidade em prática e não apenas nos discursos. Para ela, investir na representatividade nos postos de comando é fundamental.
“Ter uma mulher no comando, e uma mulher negra no comando, é muito poderoso”, afirmou a representante da Unesco.
Confira abaixo a íntegra da entrevista concedida por Gabriela Ramos ao Metrópoles:
Por que a Unesco criou um Fórum Global para debater o tema do racismo e da discriminação e por que sempre foi tão difícil para a sociedade avançar nessa temática ao longo dos séculos?
Existem muitas dimensões sobre por que nós precisamos nos direcionar para enfrentar os problemas do racismo e da discriminação. A primeira tem a ver com as pessoas. As pessoas não deveriam ser submetidas ao racismo e à discriminação. Mulheres não deveriam ganhar um salário menor para exercer os mesmos trabalhos que os homens. Afrodescendentes não devem ter menos oportunidades para conseguir um bom emprego, ou para ter uma boa educação, só por causa da cor de sua pele. Comunidades indígenas não deveriam ser deixadas para trás só porque são indígenas. Essa dimensão humana é muito importante. Muitas vezes nós focamos nos problemas sistêmicos e nos esquecemos que estamos falando sobre a dignidade das pessoas. É o futuro delas, são os direitos delas. Como a Unesco é uma instituição que defende que os direitos humanos sejam respeitados, nós fazemos isso [o Fórum] com muita convicção, porque isso é sobre pessoas que vivem em condições que não são aceitáveis. Mas tem um segundo aspecto que é importante: economias e sociedades são mais fortes quando elas são inclusivas.
E, agora, nós temos várias evidências, resultados, e é por isso que esse fórum é importante. É claro que nós precisamos criminalizar o racismo, precisamos ter leis, sistemas de justiça que ajudem a ter sociedades mais inclusivas. Mas nós também precisamos ter evidências econômicas, evidências de todos os tipos, para mostrar como as sociedades podem ser mais fortes, mais vibrantes economicamente falando, se elas derem uma chance a essas pessoas que hoje são discriminadas.
Se você pensar, por exemplo, nas comunidades pobres onde afrodescendentes estão sobrerrepresentados, onde a população indígena está sobrerrepresentada, normalmente elas têm menos acessos à educação de qualidade, a educação dos seus filhos é interrompida antes do tempo. Portanto, o que nós precisamos pensar é no quanto essa falta de investimento nas habilidades dessas populações está dificultando as possibilidades de termos economias mais dinâmicas. E então você entra em outro ponto: confiança. Democracia precisa de confiança. E se você tem pessoas que estão sendo maltratadas, que pensam que o mundo é injusto, elas vão ficar muito chateadas. Então, vão para as eleições e farão escolhas democráticas que causam divisão e que não nos ajudam a nos unir.
Existem muitos motivos sobre porque nós precisamos endereçar esse problema. Não apenas endereçá-lo através das evidências e da ciência, mas também refletir sobre o que nós estamos fazendo a respeito disso. Então quando você traz os “vencedores” [para falar sobre esse tema no Fórum] não tem nada mais inspirador. Quando você vê pessoas que estão há 20 anos ajudando as comunidades indígenas, lutando pelos direitos das garotas, é muito inspirador.
A maior parte da população brasileira é negra, mas noticiamos frequentemente casos de racismo. Todas as pesquisas também mostram que a população negra é a mais afetada pela desigualdade. Como o Brasil pode avançar nesse tema?
Eu acredito que o que está acontecendo agora, com a ministra [da Igualdade Racial, Anielle] Franco [uma das palestrantes do fórum], é tornar este tema uma prioridade. Essas expressões de discriminação e racismo estão muitas vezes escondidas, você não vê. Mulheres não conseguem um trabalho, uma promoção, pessoas negras não têm as mesmas oportunidades. Você simplesmente não vê [a discriminação acontecendo]. E, por isso, que eu acho que é muito importante ter os líderes políticos engajados com isso, comprometidos com isso e também enviando um sinal forte. Por que o Brasil decidiu receber um fórum global [sobre o tema]? Porque estão dizendo que isso é uma prioridade. É o mesmo com o presidente [Joe] Biden. Por que ele apontou uma representante especial para igualdade racial? Para tornar isso visível, você precisa tornar isso visível.
A liderança política é super importante, mas você tem que colocar o discurso em prática. Você tem que ter certeza que você tem as regras, as leis que criminalizam o racismo, mas também que investe nas comunidades que foram vítimas de racismo e discriminação. Temos muitas boas histórias, por exemplo, de resultados sobre ações afirmativas. Não tem como virar as costas para isso. Eu escuto as pessoas dizendo: “Por que você colocaria cotas para mulheres? Elas não estão conseguindo por mérito”. É tão desigual no começo que você precisa de um pequeno impulso para que elas possam, pelo menos, chegar junto. E as ações afirmativas são investimentos públicos importantes. Ter acesso à saúde, à educação de qualidade, particularmente para estas comunidades que estão em desvantagem, é o melhor investimento que você pode fazer. Porque assim que você eleva os que estão embaixo, a sociedade ficará mais forte.
É muito importante ter investimentos públicos, mas depois deve haver uma abordagem em diferentes áreas. Trazer o setor de negócios. Eu tenho visto também CEOs que estão preocupados, que não querem que suas companhias sejam racistas ou discriminatórias. Problemas de gênero têm ganhado muita tração no setor de negócios. Nós temos muitos grandes investidores, como [a multinacional americana] Black Rock, dizendo que não vão investir em empresas que não tenham alcançado pelo menos 30% de representação feminina em suas diretorias. Todas essas medidas precisam vir juntas, se nós queremos ter resultados, mas você tem que colocar o discurso em prática.
Aqui no Brasil diversos setores fizeram uma campanha para pressionar o presidente Lula a escolher uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal. O país nunca teve nenhuma ministra negra no STF. Apesar disso, Lula anunciou um homem para o posto. É possível avançar nas pautas de diversidade sem a representação feminina no comando de instituições, governos e empresas?
Bem, eu preciso dizer que, porque os homens têm o poder [risos], nós precisamos dos homens. Eles precisam levar essa agenda a sério porque se nós esperarmos para que todas as mulheres tenham posições de poder, nada vai acontecer. Ter pessoas como, por exemplo, Anielle Franco é uma afirmação por si só. Porque quando ela vai na mídia, toma decisões, investe em algumas agendas, milhões de brasileiros estão olhando para ela. Milhões de afrodescendentes estão olhando. A mensagem que ela encorpa, mesmo sem fazer nada, só aparecendo em um lugar, sem ser entrevistada é de que é possível [ter uma mulher negra nesses espaços].
Por isso, é tão importante ter mais mulheres em posições de poder. Porque desta forma nós vamos quebrar o estereótipo de que mulheres não podem alcançar esses postos. Garotas não podem ser o que elas não podem ver. Eu ainda me lembro quando a [ex] chanceler [alemã Angela] Merkel estava em seu último mandato. Eu falei com uma jovem alemã e ela me disse: “A Alemanha pode ter um homem como presidente?”. Porque ela tinha vivido toda a sua vida com a chanceler Merkel. E isso mudou a sua mente! Só isso, a possibilidade de ter uma mulher no comando, e uma mulher negra no comando, é muito poderoso.
Mas o outro ponto é que você realmente precisa continuar trazendo evidências. O que acontece quando você diz: “precisa de mais mulheres no comando”? [As pessoas respondem]: “Por que você precisa de mais mulheres no comando?”. Precisamos porque é justo, porque é mais do que correto, está bem. Mas também é mais lucrativo para as empresas. Porque para o bem e para o mal, mulheres e homens são criados de forma diferente. Mulheres são mais empáticas, ouvem mais, mais conectadas. Homens brigam mais para defender seu ponto de vista. Se você traz mais diversidade, não apenas somente mulheres, mas outros grupos que não são representados nessas posições de poder, significa que você é uma organização com a mente aberta, que você valoriza diversidade, que você ouve diferentes vozes. E quando você ouve vozes diferentes, você toma decisões melhores.
E o que é a Rede Global de Formuladores de Políticas contra o Racismo e a Discriminação?
É um grupo incrível. Nós percebemos que você tem, por exemplo, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional [FMI] que reúnem todos os ministros de Economia. Você tem a Organização Mundial do Comércio, onde todos os ministros do Comércio vão.
Então, na Unesco, nós dissemos: onde os ministros da Diversidade, da Igualdade Racial, de Gênero, se reúnem? Não há muitos lugares. O que fizemos foi dizer “todos esses nomes precisam se encontrar e conversar uns com os outros”. Nós providenciamos a plataforma, porque nós somos a instituição multilateral que nasceu para fazer isso, para colocar países para conversar juntos. E depois você não precisa fazer nada, porque esses ministros, ou os representantes deles, já querem aprender uns com os outros. Eles querem se inspirar, entender como as coisas funcionam em outras áreas, em outros países, em outros contextos. E por isso essa plataforma que nós lançamos será o lugar onde os ministros vêm para trocar experiências, onde a Unesco documentará o que funciona e o que não funciona, quais são os pontos de referência e as falhas, para que possamos aprender e tomar decisões para avançar nas demandas sobre igualdade.
Elas estão super animadas. Às vezes, nós até dizemos que esses são grupos de terapia. Uma das ministras disse: “Você está no seu país sozinho. Então, é bom quando você sai e encontra todas essas pessoas, que têm as mesmas dúvidas, as mesmas preocupações”. É uma comunidade tão rica, tão poderosa, que nós estamos muito felizes. Nós lançamos a Rede aqui e no próximo ano teremos eles conversando uns com os outros, organizando os encontros. Teremos outro Fórum Global e eles virão. Esperamos que essa reunião seja uma fonte de soluções.