Epicentro da tragédia em SP, Vila e Barra do Sahy escancaram os extremos do Brasil
Destruída na encosta do morro, Vila do Sahy cresceu com ocupações feitas por quem trabalha na Barra do Sahy, do lado rico da rodovia
atualizado
Compartilhar notícia
São Sebastião (SP) – Do lado da Rodovia Rio-Santos onde fica a praia, pousadas “pé na areia” oferecem suítes de luxo com vista para o mar e cozinha internacional aos hóspedes, enquanto casas em condomínios com piscina e quadra de tênis são anunciadas por até R$ 12 milhões para famílias da elite paulista que buscam um refúgio no litoral norte de São Paulo. Nas ruas, lojas e restaurantes exibem o nome do local como grife: Barra do Sahy.
Do lado oposto da estrada que liga o litoral paulista ao Rio de Janeiro, está a Vila do Sahy, um núcleo habitacional de São Sebastião que surgiu na década de 1990, na encosta da Serra do Mar, a partir de ocupações feitas por famílias pobres que buscavam emprego na Barra. Segundo dados da prefeitura, antes da tragédia que chocou o Brasil, cerca de 3,2 mil pessoas viviam no local, em casas precárias, erguidas de forma desordenada, em vielas onde o comércio supre apenas as necessidades básicas.
Separados por uma rodovia, os dois mundos têm uma relação simbiótica. Sem a mão de obra da Vila, a Barra não teria se desenvolvido com tamanha opulência. Da mesma forma, se não houvesse oferta de empregos como o de pedreiro, caseiro, camareira e empregada doméstica do lado da praia, o núcleo do morro não teria crescido com tanta rapidez nas últimas décadas.
A tragédia provocada pelo temporal que castigou a região há exatamente uma semana, causando 64 mortes até o momento, além de deixar mais de 4 mil pessoas sem moradia, escancarou essas desigualdades. A Vila e a Barra do Sahy foram igualmente atingidas pela maior chuva da história, mas as condições precárias de moradia, em área de alto risco de desmoronamento, acabaram por concentrar todas as vítimas do lado mais pobre da Rio-Santos. Na parte oposta, houve quem encontrasse helicóptero para conseguir deixar a região por causa dos bloqueios na rodovia.
Mudou para a Vila em busca de emprego
“Eu conhecia tudo e todo mundo aqui. Entrava em todas as vielas ali para cima. Morreu muita gente que eu conheço”, contou ao Metrópoles o comerciante Marcos Sabino Rodrigues de Souza, de 40 anos, que nasceu na Bahia e, ainda pequeno, mudou-se para o litoral norte com a família.
Por mais de 20 anos, desde o primeiro emprego, Souza vem trabalhando em pousadas na Barra do Sahy. Nesse período, participou de uma das primeiras ocupações da região que se tornou a Vila do Sahy, por ficar mais perto do trabalho. “A gente falava invasão, mas ocupação é uma palavra mais bonita”, diz ele, que mora em uma área menos devastada pelo temporal da semana passada.
Na Vila do Sahy, ele se casou e teve duas filhas. Com o emprego formal na Barra, comprou uma casa melhor do que a que havia construído e, depois, transformou parte do espaço doméstico em uma loja de roupas, enquanto trabalhava em uma pousada. Com a favela em plena expansão, os negócios se expandiram. Ele abriu um mercadinho no imóvel ao lado, fazendo entrega aos vizinhos, e largou o trabalho na pousada do outro lado da rodovia.
Dona de pousada abrigou funcionários
A pousada onde Souza trabalhou durante a maior parte da vida pertence à família da empresária Lilian Brito, de 62 anos, que é da capital paulista e foi uma das primeiras a empreender na região. Eles compraram um terreno na Barra do Sahy ainda nos anos 1980 e construíram uma pousada com 20 suítes perto da praia, além de um restaurante que fica de frente para uma piscina.
Lilian conta que 10 funcionários da pousada perderam parentes na tragédia. Todos moravam na periferia do bairro. Depois do temporal, eles ajudaram uma colega que perdeu a casa a se abrigar com familiares no Nordeste e outro empregado a ir para São Paulo.
Duas famílias de funcionários que também ficaram sem teto foram abrigadas na própria pousada, em quartos de frente para a piscina, que antes recebiam os hóspedes.
“A Vila não deveria existir como ela existia. Agora, espero que alguma coisa mude”, afirma Lilian, que mora nos Estados Unidos, mas passa as temporadas de verão na pousada da família na Barra do Sahy. Como o Metrópoles mostrou, outros donos de hotéis e restaurantes do lado da praia também ajudam as vítimas, fornecendo marmitas e arrecadando doações.
Infraestrutura precária
Tanto a Vila quanto a Barra do Sahy têm problemas de infraestrutura, mas a capacidade financeira para encontrar soluções para essas questões é que marca a diferença entre os dois bairros separados pela Rio-Santos. Além de providenciar caminhões-pipa quando falta água, a população da Barra conta com um sistema de escoamento e prevenção de enchentes para os dias de chuva. Já na Vila, as famílias convivem com o medo frequente de desmoronamento, como o que ocorreu no Carnaval, que arrasta casas erguidas no morro.
Além da exploração turística na Barra do Sahy e em outras praias de São Sebastião, destinos de muitos paulistas, o poder público e o setor privado planejam uma série de investimentos na região. As medidas propostas incluem: a ampliação do porto; a duplicação da Rodovia dos Tamoios, que liga o Planalto ao litoral norte; e a construção de novos empreendimentos no setor de petróleo e gás, alavancado pela descoberta do pré-sal, há cerca de 15 anos.
Para o Ministério Público de São Paulo (MPSP), no entanto, sem um planejamento habitacional digno desse nome, investimentos como esses na região favorecem um adensamento desordenado, como o da Vila do Sahy. Vale ressaltar que esta é apenas uma das 102 ocupações que cresceram sem controle em áreas de risco em São Sebastião ao longo dos últimos 20 anos.
Como o Metrópoles mostrou durante a semana, o MPSP já denunciou a inércia de 10 anos da Prefeitura de São Sebastião, para fazer a regularização fundiária da Vila do Sahy e alertou, em 2021, que o núcleo habitacional na encosta da Serra do Mar era uma “verdadeira tragédia anunciada”. Ao todo, há 42 ações judiciais em curso para tentar obrigar o poder público a organizar as ocupações na região e, assim, evitar novas tragédias.