Sem luminárias japonesas, rua na Liberdade guarda memória negra em SP
Rua dos Aflitos, na Liberdade, guarda memória negra e indígena da capital paulista. Movimentos sociais lutam por reconhecimento do espaço
atualizado
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São Paulo — Cinquenta e cinco metros é a distância que separa a movimentada Rua dos Estudantes de uma pequena capela cinza no bairro da Liberdade, no centro de São Paulo. Este trecho, pouco explorado pelos olhos de quem passeia pelo local, costuma ser usado como ponto de descanso para turistas. Indiferente para alguns, o pequeno espaço guarda uma grande história da capital.
Com o nome autoexplicativo, a Rua dos Aflitos já foi a alameda do primeiro cemitério público de São Paulo, onde se enterravam pessoas escravizadas e muitas vezes mortas na forca, a poucos metros dali. Desde a década de 1970, este pequeno pedaço de rua era iluminado por quatro pares de lanternas em estilo asiático, que colocavam o trecho na rota dos turistas à procura do chamado “bairro japonês”. Agora, não mais.
Na tarde dessa segunda-feira (18/11), dois dias antes do Dia da Consciência Negra, as lanternas foram retiradas pela Prefeitura de São Paulo após anos de reivindicação de movimentos negros e indígenas. “As luminárias japonesas, as feiras, o expediente comercial intenso. Nada disso é adequado para um cemitério. É necessário respeitar a memória que este lugar carrega, os corpos que ainda estão enterrados aqui”, defende Wesley Vieira, historiador e membro da União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca).
Cemitério dos Aflitos
Não se sabe ao certo quantos corpos foram enterrados sob aquele asfalto. Por 83 anos, o Cemitério dos Aflitos funcionou como o primeiro cemitério de São Paulo, onde eram enterradas pessoas de baixo status social, como indigentes e escravizados. Após o fechamento, em 1858, o centro da cidade passou por uma série de reformas urbanas e loteamentos sem que houvesse qualquer preocupação com os túmulos e covas.
A capela, que é vestígio desses tempos, foi tombada em 1978 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico da Prefeitura, poucos anos após a Liberdade ter recebido as famosas lanternas. A nova iluminação fazia parte do plano de orientalização criado por Randolfo Marques Lobato, que queria caracterizar um “típico bairro japonês” em São Paulo para atrair o turismo.
Com este movimento, a Capela sobreviveu por décadas com pouca manutenção e sob a sombra dos comércios que se ergueram na região. Em 2018, uma obra na vizinhança revelou a existência de achados arqueológicos, dando início a um processo de escavação que encontrou ossadas de nove pessoas na área.
Naquele ano, a praça principal do bairro, que antes se chamava Largo da Forca, foi renomeada para Japão-Liberdade. Inspirados pela descoberta arqueológica e preocupados com as condições de conservação da memória negra na área, foi criada a Unamca, uma associação para defender a recuperação da Capela dos Aflitos e a criação de um complexo da memória negra na região.
“Euforia antirracista”
Em 2020, dois anos após terem sido descobertas as ossadas, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) criou o Sítio Arqueológico Cemitério dos Aflitos para investigar os achados. Era época da gestão de Bruno Covas (PSDB), que recebia os respingos das manifestações contra o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos. Por aqui, a pressão era para que a capital paulista valorizasse a história de grupos não brancos.
A Liberdade, que há anos estava na pauta de discussão de entidades negras e indígenas, passou a receber visibilidade do poder municipal com a promessa de criação do Memorial dos Aflitos – um complexo que abrangeria a capela, a rua e o sítio arqueológico.
O edital foi publicado em 2022 com previsão de entrega para dezembro deste ano. No meio do processo, contudo, houve a substituição do escritório vencedor após uma das representantes ser acusada de racismo em uma reunião com membros da Unamca.
A associação reivindicava que houvesse políticas afirmativas na contratação dos arquitetos, o que não foi atendido. Após o caso, a Prefeitura optou pela convocação do segundo colocado e, há menos de um mês do que seria o prazo de entrega, as obras do Memorial ainda estão no estágio de sondagem do solo.
“A gente teve o que eu chamo de uma euforia antirracista. Em vários lugares do mundo símbolos coloniais foram derrubados e, aqui em São Paulo, um levantamento do Instituto Pólis mostrou que a cidade tinha somente 5 estátuas de pessoas negras e 2 de indígenas. Na preocupação de reverter isso, a prefeitura adquiriu o terreno para a construção do memorial, mas essa energia foi se dissipando”, avalia o historiador Wesley Vieira.
Esplanada da Liberdade
A informação pública mais recente que se tem do Memorial é de uma obra clandestina que estaria acontecendo dentro do Sítio Arqueológico dos Aflitos, causando o depósito de concreto no local. O Iphan protocolou a denúncia no dia 21 de outubro, quando tentou realizar uma vistoria, mas não conseguiu. Segundo uma nota enviada ao Metrópoles, “o local estava fechado e não havia ninguém para atender os técnicos do Instituto”.
Além da denúncia, o local também aparece nas buscas da internet por ser frequentado por jovens que vão ao bairro, à noite, para festas – neste caso, a Rua dos Aflitos é conhecida como Rua do Mijo.
Em paralelo ao contexto de desgaste da área, a Prefeitura de São Paulo apresentou, no início de novembro, a Esplanada da Liberdade, um novo projeto que prevê a criação de uma esplanada pública para ligar os viadutos do bairro. Com investimento de R$ 333 milhões da Prefeitura, a ideia é que a construção facilite o fluxo de pedestres na região para valorizar a cultura e o comércio local.
O Memorial dos Aflitos, contudo, está fora da lista de intervenções previstas (ainda em fase de audiência pública), o que é questionado pelos membros da Unamca. Para eles, falta sentido em realizar um novo projeto, com um novo aporte de verbas, enquanto o Memorial sequer foi finalizado.
“Nós temos dois grandes marcos do apagamento da memória negra no bairro. O primeiro é com as lanternas, na década de 1970. O segundo é com a mudança do nome da praça. Agora, vamos ter a cereja que coroa este apagamento: uma obra faraônica de supervalorização do bairro asiático, enquanto os espaços de valorização da memória negra ficam na espera”, diz Vieira.
Procurada, a Prefeitura de São Paulo não se pronunciou sobre o caso. O espaço segue aberto.