Como São Paulo foi de epicentro do HIV a referência na prevenção
Infecções pelo vírus da Aids caíram 55% na capital paulista. No centro, a queda de casos foi de 75%. Especialistas explicam medidas adotadas
atualizado
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São Paulo – Em meio a um cenário geral preocupante, no qual as infecções por HIV no Brasil cresceram pelo terceiro ano consecutivo, a capital paulista se tornou um contraponto exemplar. A cidade, que já foi o epicentro do vírus no país por décadas, virou referência mundial no combate à Aids, com queda de mais de 50% nos últimos quatro anos.
No centro urbano, principalmente, os dados são significativos: 75% de queda em novos casos. Em entrevista ao Metrópoles, infectologistas explicam o que os números representam e quais foram as medidas combinadas adotadas para o bom resultado. Um dos principais métodos recentes é a difusão da chamada profilaxia pré-exposição (PrEP).
De epicentro a referência no combate ao HIV
De acordo com a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), por meio da Coordenadoria de IST/Aids, as novas infecções por HIV diminuíram 55% entre 2016 e 2023; passaram de 3.761 casos para 1.705. Os dados foram compilados em 2024.
A taxa de detecção diminuiu em todas as Coordenadorias Regionais de Saúde (CRS) da cidade. A CRS Centro se destacou com a maior redução: foi de 139,5 para 35,4 casos por 100 mil habitantes no mesmo período, o que representa uma diminuição de 75%. O menor índice é registrado na zona sul, com 11,9 casos por 100 mil habitantes.
Em 2022 e 2023, os novos casos de contaminação caíram de forma expressiva em outras regiões de São Paulo. Na zona norte da cidade, houve redução de 25,4 para 12,5 casos por 100 mil habitantes. Na região sudeste, a queda foi de 29,2 para 13,6, enquanto na zona leste, a área mais populosa da capital, os números passaram de 25,4 para 14,5.
A queda nos casos de HIV é resultado da expansão do acesso aos métodos de prevenção disponibilizados no cotidiano da população paulistana. Entre os métodos implantados, estão testagem regular difundida para diagnóstico precoce, profilaxias e disponibilidade de tratamento.
A médica Carla Kobayashi, infectologista do Hospital Sírio-Libanês e consultora técnica do Ministério da Saúde, explica que o combate ao HIV tem que ocorrer de uma forma múltipla. “As políticas públicas devem partir da consciência de que é preciso agir em várias vertentes, além de capilarizar, tanto em relação à população ouvir sobre o assunto e saber que existe quanto ao aumento do acesso.”
O infectologista Rico Vasconcelos, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), esclarece que trata-se de um alinhamento com o entendimento mais moderno da temática. “O que São Paulo fez foi colocar na prática uma política pública do Ministério da Saúde que é de 2017, a chamada de prevenção combinada ao HIV. Foi o começo da introdução da importância da autonomia de cada pessoa na escolha dos métodos de prevenção”, diz o médico e fundador da VenLibre.
“A camisinha não é o único método de prevenção. Por que na anticoncepção todo mundo aceita numa boa que uma mulher cis hétero que deseja evitar filhos tome pílula, mas, quando a gente vai para o HIV, parece que o preservativo ainda é o único método de prevenção?”, questiona Vasconcelos. “Camisinha funciona bem — para quem usa de forma correta e constante. Mas não é toda a população que consegue usar do jeito que protege do HIV e evita filho”, acrescenta o especialista.
Profilaxias
Conhecida pela comunidade médica e científica como a atual estratégia mais promissora na luta contra o HIV, a profilaxia pré-exposição ao HIV (PrEP) consiste no uso diário ou sob demanda de medicamentos antirretrovirais para pessoas que não vivem com o vírus. Deve ser ingerida antes de uma exposição de risco. Também há pesquisas promissoras relacionadas à chegada da opção injetável globalmente.
“As pessoas que não têm a infecção, mas estão expostas a um risco maior e contínuo, podem fazer o uso da medicação preventivamente. Pode haver uma consulta médica para que o risco do indivíduo e as comorbidades sejam avaliadas”, explica Kobayashi.
A PrEP é destinada a pessoas que não usam preservativo em todas as relações sexuais ou se sentem mais vulneráveis a uma infecção pelo HIV. Pode usar qualquer indivíduo, com mais de 15 anos e mais de 35 quilos, que quer proteção a mais para a prevenção do vírus da Aids, independentemente de gênero ou orientação sexual.
Segundo a Prefeitura de São Paulo, atualmente, é possível ter a prescrição da profilaxia pré-exposição (PrEP) todos os dias da semana e retirar, inclusive, em unidades que funcionam 24 horas, como as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), além das máquinas automáticas localizadas nas estações da Luz e Vila Sônia do metrô.
De acordo com a pasta, a PrEP está disponível na cidade desde janeiro de 2018 e já tem mais de 55 mil pessoas cadastradas para uso. A profilaxia está disponível nos serviços da Rede Municipal Especializada em IST/Aids e no canal SPrEP, dentro do aplicativo e-saúdeSP.
Já a profilaxia pós-exposição (PEP) consiste no uso de antirretrovirais em até 72 horas após exposição sexual consentida desprotegida ou violência sexual. Também é indicada para quem sofre acidente por material biológico, como com itens perfuro-cortantes. As pessoas diagnosticadas com HIV recebem remédios gratuitos por meio da terapia antirretroviral pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Maior inimigo é o preconceito
Apesar de o HIV permanecer incurável, o enfrentamento do vírus passou por avanços louváveis nas últimas décadas. O que ainda persiste como um inimigo da luta contra a Aids é o preconceito, avaliam os especialistas. No Brasil, o crime é tipificado como sorofobia e pode ser punido com prisão de um a quatro anos e multa.
Para Rico Vasconcelos, é essencial acabar com desigualdades e discriminações que estão intrínsecas, como racismo, homofobia, machismo e transfobia. “A gente ainda tem que brigar para a menina trans não ser assassinada, para ser atendida pelo nome social; o menino gay tem que sair da própria cidade no interior para não ser espancado. Garantir os direitos individuais é a primeira base para conseguir colocar a prevenção combinada ao HIV”, defende o médico.
“Quando se fala em HIV e Aids, muitas pessoas ainda associam ao estigma dos anos 1990, à imagem de uma pessoa ‘caquética’. Não é isso. A pessoa que vive com o HIV, que é somente a infecção pelo vírus, e faz um tratamento regular, não está imunossuprimida. Hoje, a gente até pode comparar com uma doença crônica, como diabetes. É preciso fazer o uso de medicação, mas há um controle da doença a partir do tratamento e, consequentemente, qualidade de vida”, destaca Carla Kobayashi.
“A Aids é a fase avançada da infecção. Quando há um comprometimento importante do sistema imunológico, uma queda das células chamadas de linfócitos, que são as mais afetadas pelo vírus”, completa a infectologista.
Aids no Brasil e no mundo
O Ministério da Saúde atualizou em 11 dezembro de 2024 o Boletim Epidemiológico de HIV e Aids com os dados de 2023. Segundo o estudo, foram 46,6 mil pessoas infectadas com o vírus no Brasil no ano. Isso representa um aumento de 4,5% em relação ao que foi registrado em 2022. Desses casos, 63,2% eram de indivíduos autodeclarados negros (49,7% pardos e 13,5% pretos).
No mundo, 39,9 milhões de pessoas vivem com HIV, segundo dados de 2023 do Unaids, programa da Organização das Nações Unidas (ONU). Houve 1,3 milhão, no último ano, de novos casos, e uma queda — não homogênea — de 39%. Contudo, na América Latina, de 2010 a 2023, por exemplo, as infecções aumentaram em 9%.
Entre as cidades que, assim como São Paulo, adotaram as estratégias combinadas de prevenção, estão Washington e São Francisco, nos Estados Unidos; Berlim, na Alemanha; Londres, na Inglaterra; e Amsterdã, na Holanda.
“Todos os lugares que ‘viraram a chavinha’ e começaram a entender o conceito da prevenção combinada têm um bom resultado. Como país, o Brasil ainda não está conseguindo”, afirma Vasconcelos.
No cenário mundial, os especialistas apontam que há atualmente um avanço significativo na noção da importância do diagnóstico precoce. No entanto, em relação ao tratamento, o Brasil tem uma grande vantagem.
“Todo o acompanhamento e, principalmente, o tratamento antirretroviral é completamente fornecido pelo SUS. Isso é um abismo de diferença em comparação a outros países”, enfatiza Carla Kobayashi.
“Vírus que desafia a ciência”
Em relação à extinção da Aids, a comunidade científica internacional continua empenhada nas pesquisas. Apesar de já existirem estudos promissores, ainda não há uma estimativa certeira para a chegada de uma imunização.
“O mundo científico tem o entendimento de que o grande avanço seria uma vacina que pudesse ser disseminada para todo mundo. Com isso, a gente estaria próximo da cura ou da extinção do vírus, mas são estudos que vão levar mais tempo”, explica Carla Kobayashi.
“O HIV é um vírus que desafia a ciência. São vírus diferentes, que têm uma taxa de mutação diferente. Quando pego Covid, consigo me curar sozinho. Quando pego HIV, não consigo me curar sozinho. Então, o HIV desafia o nosso sistema imune”, complementa Vasconcelos.
Por enquanto, o que os especialistas indicam é o tratamento antirretroviral para manter a carga viral indetectável. Para além do avanço científico e tecnológico, é preciso mudar principalmente o social, para acabar sobretudo com o tabu.