Fasano: “Dizer que um restaurante é o melhor do mundo é patético”
Presente na lista do Gambero Rosso, o restaurateur Gero Fasano critica o 50 Best e o Guia Michelin pelo espaço que dão aos chefs autorais
atualizado
Compartilhar notícia
Os últimos tempos têm sido de mudanças na vida do paulistano Gero Fasano. A começar pelo nome. “Meu nome oficial hoje é Gero”, diz o restaurateur que, quando se chamava Rogério, consolidou o sobrenome da família como a marca de gastronomia mais prestigiada do Brasil, por meio de casas como Fasano e Gero.
O seu sucesso, aliás, é internacional: o Fasano de Nova York, que abriu as portas recentemente, já é considerado um dos melhores restaurantes da cidade. Aos 60 anos, Gero trocou de hábitos depois que passou por dois transplantes de fígado e instalou cinco stents no coração: faz ginástica pela manhã, abandonou o tabaco, reduziu a carga horária de trabalho e passou a beber com mais moderação. Mas há uma convicção de que ele não muda: a crítica às premiações de gastronomia atuais, em especial à lista 50 Best, que faz um ranking dos “melhores restaurantes do mundo”.
Na sua visão, “campeonato de restaurantes é uma bobagem”, por comparar coisas diferentes, valorizar apenas chefs autorais e escantear os restaurateurs, como ele, que têm uma visão do universo total do que é necessário para criar e manter um bom restaurante.
Ele tem mais apreço por guias que pontuam os restaurantes, caso do italiano Gambero Rosso, que concedeu, na quarta-feira passada, dois garfos – o equivalente a duas estrelas no Michelin – ao restaurante Fasano de São Paulo, no guia 2023 Top Italian Restaurants da publicação. Nesta entrevista, concedida no saguão do hotel Fasano em São Paulo, ele dá seu ponto de vista em relação a esses temas e reflete sobre o seu próprio futuro como profissional da gastronomia.
Você é um crítico das premiações de gastronomia em geral e do World’s 50 Best Restaurants, que coloca o Fasano entre os 100 melhores da América Latina, em particular. Quais são os problemas que você vê nesse tipo de premiação?
O meu conceito é muito simples: não existe campeonato de restaurantes. Não é a esse gênero de comparação que um guia ou uma revista especializada em gastronomia deveriam se ater. Eles deveriam informar simplesmente o que julgam ser bom. O restaurante clássico pode ser tão bom quanto o vegano, que pode ser tão bom quanto o que serve nitrogênio líquido. Mas é patético dizer que um restaurante é o melhor do mundo. É preferível fazer o que o guia Zagat fazia: dar pontos para comida, serviço, ambiente e preço. Esses são os critérios que as pessoas têm para escolher aonde querem ir. Dá um panorama e é mais informativo do que ficar colocando restaurante para concorrer na linha “eu sou melhor que você”. Eu acho que essa coisa do “o Melhor de” tende acabar porque é uma coisa boba.
Você também já fez críticas ao Guia Michelin…
Fiz, mas reconheço que a minha crítica era fraca. Apontei a rivalidade da francesa Michelin com a italiana Pirelli, para falar de certas escolhas. A verdade é que os italianos não gostam do Michelin porque se sentem maltratados pelo guia. O Michelin não tem noção da variedade da gastronomia italiana. Em Tóquio, acho, há uns vinte e poucos restaurantes que receberam 3 estrelas do Michelin. A Itália, que tem uma das gastronomias mais incríveis que existem na Terra, porque a cada 100 quilômetros a cozinha muda, só tem uns cinco. Eu, por exemplo, gostaria de ser julgado por críticos como fui pelo Gambero Rosso. Este, sim! E os críticos do Gambero Rosso são anônimos de verdade, sabem a diferença da polenta X, da polenta Y, do risoto A, do risoto B. Eles me deram uma pontuação ótima (2 garfos) e não avaliaram como se os restaurantes disputassem um campeonato.
A presença em listas de melhores restaurantes tem impacto, por exemplo, no número de reservas de mesas?
Tem quando é novidade. No meu caso, honestamente, não. Se você tem uma clientela já formada, isso não é importante. Quando você está despontando, certamente, cria curiosidade. Mas, por incrível que pareça, nem metade das novidades dura até a próxima lista. Acho um absurdo não me julgarem pelo todo da minha obra. Pelo que eu faço em matéria decomida, de serviço, de ambiente. Esse negócio de dizer que restaurante é só comida é uma bobagem. Obviamente, a comida é fundamental, mas restaurante é uma experiência que ultrapassa o prato.
Noventa por cento desses restaurantes do 50 Best o obrigam a comer um menu degustação. Não suporto ser servido 12 ou 18 vezes durante um jantar e, a cada 2 minutos, ser interrompido por um discurso de um maître que explica coisas que você não consegue entender ou que é muito mais do que você quer saber sobre o que está no seu prato. Restaurante de chef costuma ser entediante, técnico, sem boa luz, sem ambiente. Por trás de cada prato que sirvo no meu restaurante há um pensamento, uma filosofia, mas eu não a empurro goela abaixo do cliente. Não consigo servir nada que eu não goste ou em que eu não acredite.
Você não gostaria de ter “o melhor restaurante do mundo”?
Não, não quero ter o melhor de nada. Eu não saberia mudar o meu estilo pra fazer sucesso, juro. Este é o papel do tal do restaurateur: ser o cara que tenta olhar o todo, não fazer coisas esdrúxulas para ganhar prêmio. Volto a dizer: não existe campeonato de gastronomia, não participo dessa bobagem. Agora, se essa lista do 50 Best fosse “os 50 chefs mais instigantes do mundo”, isso teria tudo a ver. Mas ela peca, erra, quando classifica que este ou aquele é o melhor restaurante do mundo.
Você já foi a algum desses restaurantes da lista dos “melhores do mundo”?
Fui ao Fat Duck (eleito pelo 50 Best o melhor do mundo em 2005). Era um cottage lindo, mas cheio de quadros modernosos, horríveis. O último prato, por exemplo, era um sorvete de bacon com mostarda. Sou italiano demais para comer isso. No meio do prato, vinha uma cloche: o cara levantava e você se deparava com uma língua de sogra. Você olhava ao redor e todo mundo estava assoprando. Que tipo de circo é esse, que palhaçada é essa? É uma bobagem que não tem tamanho.
No Fasano, a concepção de um prato parte de você ou do chef Luca Gozzani?
Parte de mim, mas, obviamente, muitas coisas vêm do chef, com a minha aprovação. Para estar comigo há doze anos, ele precisa pensar bastante como eu. Sou um empresário, tenho um caminhão de coisas para fazer, ele tem de ir atrás das melhores matérias-primas, da melhor muçarela que ninguém fez até hoje, do cara que faz o melhor presunto, dizer se temos que importar tal coisa, trufa fresca de fulano de tal. Aí cabe a mim transformar isso em realidade. Então, trabalhamos em equipe. Tudo na cozinha requer matéria-prima boa. Se não tem, não tem cozinha boa. Qual é, por exemplo, o raciocínio de uma cozinha italiana que quer realmente ser muito boa no Brasil? Tem de importar coisas, não há outro jeito. Uma vez eu vi o Anthony Bourdain (chef franco-americano, morto em 2018) tirando um sarro desses caras que falam que o restaurante deles é “farm to table” (da fazenda diretamente para a mesa, em tradução livre). Como é que poderia ser diferente? A Amazônia: por acaso ela está aqui na esquina? Um pirarucu demora 5 horas de avião pra chegar a São Paulo. Que diferença tem das 10 horas de um voo que traz um peixe do Mediterrâneo? Nada contra quem queira fazer uma cozinha local. Mas, sobretudo numametrópole, a graça é a variedade.
Qual é a sua opinião sobre a crítica gastronômica hoje?
Para conhecer uma cozinha de verdade, é preciso morar no país dela. Quer falar de cozinha italiana, vai morar lá. Não adianta ir só nos três melhores restaurantes da Itália. Só morando lá e indo na casa das pessoas, comendo caro, comendo barato, entendendo a importância dos panini para a alta gastronomia italiana, que você adquire uma formação suficiente.
Isso vale para a cozinha francesa também…
Também. Eu me meti a fazer um restaurante meio francês, meio italiano. O que fiz para me defender? Contratei um chef francês. Agora, o Erick Jacquin fez um restaurante italiano e finaliza os risotos dele com creme de leite. Minha nonna morreria. O tal risoto do Emmanuel Bassoleil: ele até ficou meio fulo comigo. Fulo, não, porque ele tem bom humor e gosto muito dele. Mas eu disse a ele: “pô, Bassoleil, na boa, você não pode chamar isso de risoto. Isso é um PF. Tem bife, banana frita, arroz, queijo coalho com um ovo frito em cima. Chame do que você quiser, mas não chame de risoto”. E a crítica especializada teria de tratar isso não como risoto.
Você abriu um restaurante em Nova York. Consegue traçar um paralelo com a cena gastronômica de São Paulo?
Sabe qual é a grande diferença de Nova York? É que o público do restaurante lá, de fato, é 80% da cidade. E vou dar um exemplo: o porteiro do prédio em que alugo um apartamento, um italiano, foi ao meu restaurante no aniversário da mulher. Fiquei muito feliz. Em Nova York, um cidadão como esse pode desfrutar do Fasano, sem pensar “ah, aqui não é pra mim”. É para ele, sim, se ele tiver o dinheiro para gastar lá. Ele não pode ir todo dia, óbvio, mas, no aniversário da mulher, levou-a lá, sem achar que não pertencia àquele mundo. Cara, isso me dá mais tesão do que atender um bilionário, percebe?
Como você avalia o momento dos restaurantes em São Paulo?
Com um pouco de ironia. O Gero, por exemplo, todo mundo copiou, nesse conceito de trattoria chique. É impressionante, é disparado o restaurante mais copiado em 20 anos no Brasil. Mas acho que, de certa maneira, o cenário melhorou muito, sobretudo no fornecimento da matéria-prima. Antigamente, tínhamos que implorar a um grande açougueiro para conseguir 10 quilos de cordeiro. Não é mais assim. Hoje, existe uma cadeia que produz para restaurantes de certo nível. Ficou tudo muito melhor.
Você gosta de pizza?
Adoro. Mas como é que eu como pizza? Com muito tomate e quase zero de queijo. Mas vai falar isso para um paulistano…
Quais são as pizzas de São Paulo que você gosta?
Gosto muito da Carlos Pizza. E amo a Castelões. Agora, sabe com o que eu não me conformo? Pizza portuguesa.
Mas em cima de uma massa como a de pizza não cabe qualquer cobertura?
Não cabe. Acho que se há uma coisa em que se deve ter fronteira é na culinária. Por exemplo, espaguete com shoyu não tem como ser bom. Mas quando, sei lá, no interior, falta algum ingrediente, pode adaptar. Eu até admito que um carbonara seja feito com bacon, desde que seja uma emulsão de ovo. Nunca um creme de leite com bacon.
Pois é, quem inventou essa desgraça?
A cozinha italiana viaja mal, ela é muito simples e difícil para conservar. Então, pizza, por exemplo, virou qualquer coisa. Existe até pizza de banana e doce de leite. Mas me cite um lugar em Nápoles no qual você ache pizza com doce de leite. Se achar, eu pago a conta, pago a sua viagem. Enfim, cozinha tem fronteiras e muito bem definidas.
Da gastronomia brasileira, o que você gosta de comer?
Arroz, feijão, ovo frito, bife acebolado. Carne boa, eu gosto muito.
Você já provou carne vegana?
Já, mas eu não sou vegano por natureza.
Você acompanha esse movimento que diz, entre outras coisas, que os insetos serão a fonte de proteína do futuro?
Tenho poucos anos de vida, não preciso me adaptar tanto assim.
Já pensa em parar?
Tenho 60 anos, tive três fígados, implantei cinco stents. Imaginar-me parando é algo digno.
Quando parar, você vai fazer o quê? Viver em São Paulo
Sei lá. Eu gosto muito da cidade, mas tenho um problema básico com São Paulo: não ando a pé na rua, uma das coisas que mais amo na vida. Primeiro, porque é uma cidade cheia de altos e baixos, um pouco como Lisboa. Andar em cidades como Nova York, Paris, Londres, Milão, Roma, Veneza… Eu ando três horas em Veneza e não percebo. Como eu prefiro mil vezes andar três horas em vez de fazer meia hora de esteira, ainda sonho morar num lugar como esses nos meus últimos anos de vida, onde andar possa ser o meu esporte.
Você fez dois transplantes de fígado.
Sim. Foi muito ruim quando recebi o diagnóstico de cirrose e o médico me disse que, se eu não parasse de beber, eu não iria aguentar os três anos da fila da espera pelo fígado, que é uma lista séria, grande. O SUS, nesse ponto, é impecável.
Como ficou a sua cabeça?
Não toquei em um copo de vinho, joguei fora o cigarro, não tive abstinência. As pessoas falam que fui forte, mas, para mim, fui apenas movido pelo instinto de sobrevivência. Não tem nada a ver com superação. Tem a ver com você saber se ainda quer viver.