Restauradores: os profissionais que podem salvar o patrimônio nacional
O trabalho dos restauradores, assim como dos médicos, exige muita perícia técnica; entenda como é feita a restauração de uma obra de arte
atualizado
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Logo que viu as imagens de obras artes destruídas nos atos terroristas do último domingo (8/1), a restauradora Alessandra Rosado, diretora do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (CECOR-EBA/UFMG), enviou um ofício ao governo federal. No documento, ela comunicou a disponibilidade da equipe e dos laboratórios da universidade para ajudar no restauro das peças vandalizadas.
Os nomes dos profissionais que vão restaurar as obras danificadas ainda não foram divulgados. De acordo com nota do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o conjunto de obras de arte não é tombado. Por isso, “as ações de restauração cabem aos departamentos das instituições com essa atribuição […], o que não impede, entretanto, que o Instituto ofereça orientação técnica para a restauração desses bens, quando solicitado”. A Unesco também já se prontificou em disponibilizar profissionais.
Embora o conjunto arquitetônico projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer seja tombado desde 2007, o acervo de obras de arte e o mobiliário não são. “Se essas obras fossem tombadas, já facilitaria qualquer ação que precisasse ser tomada”, diz Alessandra Rosado em entrevista ao Metrópoles.
Uma das justificativas da restauradora para o tombamento é o fato de muitas obras de arte que estão no local terem sido encomendadas para a decoração das construções — portanto, fariam parte do projeto pensando por Niemeyer.
A arte de restaurar
A UFMG foi a primeira universidade a ter um curso de graduação em Conservação e Restauro no Brasil, aberto em 2008. De acordo com Alessandra, dá para traçar um paralelo entre o trabalho de um restaurador e o de um médico:
“O restaurador é um especialista que faz toda a anamnese da obra e vai indicar quais análises precisam ser feitas para dar um diagnóstico.”
A obra de arte é como se fosse uma pessoa. O restaurador não faz nenhuma intervenção sem uma análise rigorosa prévia. Um dos primeiros exames feitos é o escaneamento com luz ultravioleta.
O procedimento permite que o restaurador identifique, por exemplo, se houve alguma repintura na tela ou alguma modificação da tinta provocada por uma reação química.
Outra análise é a identificação do que provocou o dano na obra, que pode ser classificado como: temperatura, umidade, poluição, iluminação, impacto físico, incêndio ou crime — classificação que as obras vandalizadas em Brasília devem receber. Todas essas informações vão para o histórico da obra, que seria equivalente a um prontuário médico.
Segundo relatório divulgado pelo Iphan na última quinta-feira (12/1), estima-se que as perfurações presente na tela “As mulatas”, de Di Cavalcante, avaliada em R$ 8 milhões, foram provocadas por arremessos de pedra portuguesa.
Profissionais especializados
Assim como os médicos se especializam em áreas diferentes — oftalmologia, gastroenterologia, psiquiatria e ortopedia —, os restauradores também têm suas especialidades: gravura, pintura, escultura, têxtil… Dentro de cada área, eles podem ainda focar em materiais, como papel, pedra, metal, madeira e acrílico.
Alessandra é especializada em pintura, pela sua experiência, a tela de Di Cavalcanti deve ter sido pintada com materiais tradicionais. “É preciso investigar se a tela é de linho ou algodão, mas a pintura deve ter sido feita a óleo”, supõe. Saber previamente esses detalhes indicam caminhos para o restaurador.
Obras modernas, apesar de ousarem em seus conteúdos e formas, costumam usar materiais artísticos tradicionais — óleo, têmpera, tela, bronze, mármore. Diferente do que acontece com os trabalhos produzidos a partir da década de 1950, como os de Athos Bulcão.
Um dos painéis realizado pelo artista, que estavam em um dos prédios vandalizados, já foi apontado por técnicos do Iphan de restauro mais complexo. Segundo Alessandra, a dificuldade vem pelo fato de essas obras terem sido feitas em um momento em que os artistas experimentavam uma variedade maior de tintas e de suportes.
Alguns restauradores da UFMG participaram do grupo de estudo de conservação e restauro da coleção de Patrícia Phelps Cisneros, um das mais importantes da América Latina. O acervo tem relevantes obras de artistas concretos, incluindo brasileiros — pinturas de Maria Leontina, Hélio Oiticica e Lygia Clark fazem parte da coleção.
“Fizemos uma pesquisa para compreender a materialidade das obras e seus processos de degradação, focado na diferença dos materiais usados: tintas industriais, aglomerados de madeira e placas de eucatex”, explica.
Um trabalho quase invisível
No caso das peças que foram quebradas, a exemplo da escultura “O flautista”, de Bruno Giorgi, e do objeto de madeira sem título, de Frans Krajcberg, Alessandra aponta que o trabalho do restaurador se assemelha ao de um arqueólogo.
“Neste caso, como tinham muitos cacos de vidro e outros materiais espalhados pelo chão, o restaurador tem de olhar muito bem a área para ver se não havia nenhum pedaço de alguma obra perdido no meio. Às vezes, o profissional precisa até revirar o lixo para verificar se nada foi descartado por engano”, diz.
Caso falte alguma parte, o restaurador precisa verificar se é possível reconstituir o detalhe faltante e de qual material e técnica pode ser refeito.
Alessandra ressalta ainda que toda restauração deixa cicatrizes nas obras. O maior desafio do restaurador é deixar essa marca praticamente imperceptível aos olhos do público. “O restauro não pode sobrepôr à obra. O restaurador não cria, ele não é artista. Nosso trabalho é garantir que essa obra continue falando com o público aquilo que ela pretendia ao ser feita”, conclui.
Confira a lista de obras de arte vandalizadas segundo o Iphan:
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- Pintura sobre tela “As mulatas”, de Emiliano Di Cavalcanti, por perfurações contínuas na parte central da tela — estima-se que os danos foram provocados por arremessos de pedra portuguesa;
- Escultura em bronze “O flautista”, de Bruno Giorgi, fragmentada em toda sua extensão;
- Escultura em madeira, de Frans Krajcberg, com a estrutura rompida em quatro pontos, sendo que em um deles houve completa separação do suporte;
- Relógio de Balthazar Martinot, fragmentado em toda sua extensão, apresentando fissuras, deformações e perdas;
- “Bandeira do Brasil”, de Jorge Eduardo, foi encontrada mergulhada em água;
- “A Justiça” (Recepção) foi removida e arremessada do Palácio, danos a avaliar;
- Painel de Mármore de Athos Bulcão (Plenário), arranhão na peça de mármore próxima ao Brasão da República;
- Escultura “A Justiça” (Praça dos Três Poderes), com pichações;
- Painel “Ventania” Athos Bulcão (Salão Verde e outros ambientes), com danos pontuais;
- Cinco quadros da galeria de presidentes do Senado perfurados, rasgados ou cortados;
- Pintura grande (referente ao Primeiro Congresso), moldura danificada por tentativa de derrubá-la;
- Tapeçaria de Roberto Burle Marx, rasgada, cortada;
- Quadro de Guido Mondim danificado (removido para reserva técnica);
- Painel vermelho de Athos Bulcão, danificado.
Vandalismo em Brasília
Em atos terroristas, apoiadores do ex-presidente invadiram os prédios do Supremo Tribunal Federal (STF), Palácio do Planalto, Congresso Nacional e ministérios.
Os vândalos foram retirados da Praça dos Três Poderes por equipes da Força Nacional e da Polícia Militar do Distrito Federal.
O presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), decretou intervenção federal na segurança pública para conter atos terroristas como os registrados no último domingo (8/1).