Kobra: “Já fui ao fundo do poço, mas hoje estou no meu melhor momento”
Em entrevista, o artista Eduardo Kobra fala sobre sua trajetória, o documentário que retrata sua carreira e como foi tratar a depressão
atualizado
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O artista Eduardo Kobra, em seus murais espalhados por grandes centros urbanos do mundo todo, costuma retratar pessoas comuns e celebridades como Ayrton Senna, Anne Frank e Oscar Niemeyer. No documentário “Kobra Auto Retrato”, que chegou aos cinemas neste mês, a diretora Lina Chamie propõe ao próprio artista contar a sua história em primeira pessoa.
O filme foi exibido pela primeira vez no Festival do Rio, em outubro, e desde então tem participado de importantes festivais como DOC NYC, principal festival de documentários dos Estados Unidos. Embora não goste muito de falar sobre a sua vida e, como todo artista, prefira que o trabalho fale por si, Kobra não se furta em comentar sobre assuntos difíceis como a depressão, dependência de remédio e a relação complicada com os pais no começo da carreira.
Se monólogos costumam ser cansativos, Lina Chamie soube muito bem como mesclar imagens tanto de arquivo quanto produzidas para o documentário e interessantes efeitos sonoros e visuais que ajudam o espectador a embarcar em cada assunto abordado pelo artista. Para apresentar suas obras espalhadas pela cidade, o público é convidado a fazer um passeio de bicicleta pelas ruas de diferentes lugares gravado como se fosse um plano sequência.
Enquanto conversava com o Metrópoles, Kobra estava no carro a caminho do aeroporto onde pegaria voo para Miami. Nascido e criado na periferia de São Paulo, no bairro do Campo Limpo, zona sul da capital paulista, o artista nunca imaginou que seus desenhos no caderno o levassem a conhecer o mundo. Inclusive nem mesmo os pais acreditavam que sair para pichar ou pintar muros levariam o filho a algum lugar.
O artista tem murais em países como Estados Unidos, Itália, Inglaterra, Holanda e Rússia. Na última semana, em Miami, onde nesta semana aconteceu a Art Basel, uma das principais feiras de arte do mundo, Kobra foi divulgar o documentário e fazer um mural na galeria The House.
Confira o principais trechos da entrevista
O grafite tem como característica ser efêmero. O primeiro trabalho que você fez em Londres foi em um muro onde antes havia um Banksy. Mas atualmente você defende que os grafites sejam preservados. Por que e como preservar os grafites?
Eu fui um dos precursores em São Paulo a falar da questão do mural. Antes disso só se falava de picho e grafite. O pessoal da street art já se acostumou com o efêmero – alguns artistas defendem esse lado. Quando viajo para outros países, sempre procuro saber onde estão os murais e os grafites conhecidos de cada lugar para visitar. Eu comecei a perceber que tudo era tratado de forma descartável. Nada é feito para preservar. Não existe uma preocupação do preparo da parede onde a obra vai ser feita, não são usadas tintas mais duradouras ou aplicação de verniz para durar mais. E não há critério para remoção, às vezes o dono do muro apaga ou chama outros artistas para fazer algo para cima. Mas eu entendi que o muralismo é importante, como todas as artes são. Tem murais que hoje fazem parte da história da arte que todo mundo ama ver. Tem artistas excepcionais nas ruas que merecem ser vistos pelas próximas gerações. Acho que precisa ter regras mais claras de preservação. É possível cuidar. Em Nova York, você consegue ver painéis pintados pelo Keith Haring há mais de 20 anos porque a cidade e as pessoas cuidam. Eu tenho feito projetos para conseguir apoios para restaurar alguns dos meus painéis. Em breve, vou trabalhar no restauro do painel que fiz sobre o Oscar Niemeyer [que dá para ver da av. Paulista].
Boa parte de seus trabalhos explora texturas coloridas que lembram até patchwork. O seu pai era tapeceiro e, no documentário, você diz que ele foi sua primeira referência em arte, porque o considera, hoje, um artista. Como o trabalho do seu pai influenciou você?
Ele era muito cuidadoso e trabalhava com restauração de móveis antigos. Ele tinha catálogos com recortes de tecido do mundo todo. Eu trabalhei com ele e gostava muito de ter contato com os materiais, ver as estampas dos estofados. Hoje, eu vejo que isso ficou no meu inconsciente. Meus primeiros murais são feitos com imagens antigas da cidade feitas em preto e branco. Depois comecei a mesclar as imagens com as cores. Acho que tem essa influência do meu pai e também dos grafites que vi nos Estados Unidos. Sempre que possível eu uso cores e formas que se relacionam com o tema que estou pintado. No mural do Oscar Niemeyer, por exemplo, usei formas que estão presentes nos seus projetos de arquitetura. Para o retrato da Anne Frank, usei cores e padrões da estampa presentes na capa do diário.
Sua primeira manifestação nas ruas foi a pichação, depois seguiu para grafite até chegar aos murais que faz hoje. Você poderia comentar um pouco sobre esse percurso?
Primeiro, eu respeito todas as manifestações. Embora o suporte seja a rua, a cidade, a intenção é diferente. Não existe uma evolução ou um caminho de uma coisa leve para outra. Eu não passei de um movimento para o outro. Comecei na pichação, mas já tinha uma vocação para o desenho. O picho e o grafite são feitos de forma ilegal. Já o mural tem autorização do proprietário do muro, porque é um processo que demora mais tempo.
Durante muito tempo a arte de rua foi vista de forma marginalizada. Hoje, você se sente inserido no sistema de arte?
Eu vim da periferia e cresci com restrição financeira. Precisei me esforçar 10 vezes mais para fazer as coisas acontecerem. Nunca pertenci a movimento nenhum. Eu sou autodidata e continuo nesse caminho. Eu nunca imaginei concorrer a prêmios, expor meu trabalho em galerias de arte ou receber convites para expor em museus, como tem acontecido recentemente. Mas o meu ímpeto é criar na rua. A arte é uma ferramenta de comunicação e uma vacina contra a violência, guerra e racismo. Por isso coloco meu trabalho a disposição para falar sobre esse temas. Como uma ferramenta de conscientização.
No documentário, você volta à escola onde estudou e foi expulso por pichar as paredes. Como foi voltar a esse espaço para fazer um mural como os alunos?
Um pequeno milagre. É muito emocionante. Pelo menos uma vez por semana eu recebo mensagens de alunos ou professores que estão fazendo algum trabalho sobre os meus murais – do ensino infantil ao universitário. Eu sou autodidata e ter meu trabalho estudado por crianças e adultos é algo fabuloso. A repercussão entre os alunos da escola em saber que eu tinha estudado ali foi muito bacana.
Você faz um relato muito sincero sobre a depressão e a dependência que os remédios provocaram. Como hoje você está cuidando disso?
Há cerca de 4 meses estou sem tomar nenhum remédio controlado. Mas já fui ao fundo do poço. Cheguei a tomar 12 comprimidos de tarja preta por dia e fiquei viciado nesses remédios. Um caminho é procurar ajuda porque sair disso sozinho é praticamente impossível. Além de apoio de psicólogos e médicos, fazer atividades físicas, parar de beber, me alimentar melhor – tenho várias restrições alimentares como lactose e glúten – me ajudaram muito. Essa mudança de estilo de vida, me fez encontrar um equilíbrio psicológico e emocional. A fé também me ajudou bastante. Eu ainda sofro com insônia alguns dias. Comparado aos últimos 20 anos, hoje, estou no meu melhor momento.
Você poderia indicar cinco murais seus para as pessoas verem em São Paulo?
“A mão de deus”, no Minhocão.
“Coexistência”, que está na Igreja do Calvário [rua Cardeal Arcoverde, 950].
“Ciência e fé”, no Instituto de Radiologia, no Hospital das Clínicas [Travessa, dr. Ovídio Pires de Campos]
“Imigrantes”, em frente ao Museu da Imigração [R. Visc. de Parnaíba, 1316 – Mooca].
“Ayrton Senna”, na esquina da Paulista com a Consolação.
Veja o trailer