Rota: como funciona a tropa de elite da PM envolvida nas mortes no litoral de SP
Rota tem treinamento diário, armas de guerra, histórico de grande letalidade e ações violentas; votação define quem fará parte da tropa
atualizado
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São Paulo — Criada na década de 1970 para combater ações da esquerda armada durante a ditadura militar, a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) conta hoje com cerca de 800 integrantes — os boinas pretas — e é considerada a tropa de elite da Polícia Militar (PM) de São Paulo. Também é a mais letal.
Não há concurso e nem formação específicos exigidos para ingressar na Rota, o 1º Batalhão de Choque da PM e onde trabalhava o soldado Patrick Bastos Reis, assassinado com um tiro no tórax dia 27 de julho, durante um patrulhamento em uma comunidade no Guarujá, litoral sul paulista.
A morte de um PM da Rota em serviço comoveu a corporação. Em poucas horas, o secretário da Segurança Pùblica, Guilherme Derrite, que já foi do batalhão, ordenou a deflagração da Operação Escudo, para capturar os assassinos do soldado. Desde então, 16 pessoas foram mortas em supostos confrontos com a polícia e 147 suspeitos foram presos.
O número elevado de mortos na operação, classificada como chacina por órgãos de defesa dos Direitos Humanos, colocou em evidência a Rota, cuja fama de ser a “polícia que mata” é historicamente explorada por políticos como o ex-governador e ex-prefeito Paulo Maluf.
Laços de confiança
Para entrar e permanecer no quartel amarelo da Avenida Tiradentes, sede da Rota no bairro da Luz, região central de São Paulo, é preciso criar laços de confiança com quem já faz parte do grupo e se enquadrar no método de trabalho de quem está por lá.
Com o fim da ditadura militar, na década de 1980, a Rota foi reorientada para atuar no combate ao crime organizado, em especial, o tráfico de drogas. Ao longo de décadas, a tropa ficou marcada pela alta letalidade, uso político e também um padrão de policiamento diferenciado em relação aos demais batalhões da PM.
Nos primeiros seis meses deste ano, já com câmeras nos uniformes, foram 23 mortos pelo Comando de Policiamento de Choque, do qual a Rota faz parte. No mesmo período de 2019, no pré-pandemia, sem câmeras, foram 67 mortos — 21 só no mês de abril daquele ano.
“O papel da Rota na atualidade é dar apoio às demais unidades operacionais. Quando pega uma região com altos índices de criminalidade, você leva a tropa para essa área e deixa por lá por 30 dias ou mais. É uma tropa bastante especializada, é inquestionável”, afirma Glauco Carvalho, coronel da reserva da PM e doutor em Ciência Política.
Como aconteceu com o soldado Patrick Bastos Reis, assassinado no último dia 27, no Guarujá, há policiais de outros batalhões que desejam fazer parte da Rota. Nesse caso, o interessado deve ir ao batalhão na Avenida Tiradentes e preencher uma ficha. A indicação de alguém que já está por lá também é importante.
De forma geral, os dados serão repassados ao P2 (serviço reservado da PM), que fará uma investigação sobre a vida pessoal do pretendente e a sua atuação no batalhão de área onde trabalha. Ou seja, ele já chega formado, não como recruta.
Se aprovado, o candidato passará cerca de três meses em guarda no portão de armas, a entrada do batalhão, anotando quem entre e quem sai da unidade. Usará o uniforme de policial da Rota, mas ainda não terá a boina preta e o braçal que compõem o vestuário completo.
Na sequência, após montar guarda por três meses, ele passa a ser o quinto homem na viatura, sentando no banco traseiro, no meio de outros dois policiais que ficam do lado das janelas. A partir daí, ele passa a usar a boina preta.
“É o homem que participa de tudo e não participa de nada. Na realidade, a gente tenta poupar o estagiário de envolvimento em ocorrência”, diz o deputado federal Paulo Telhada (Progressistas), que foi oficial ao longo da carreira e também comandou a Rota pela última vez em 2011, quando foi para a reserva da PM.
Durante o período de estágio, o candidato é sabatinado sobre uma série de questões objetivas e aspectos doutrinários do batalhão. “É a tropa quem seleciona, quem vai dizer se ele fica ou não. Todos vão votar se ele merece ou não permanecer na Rota”, diz Telhada.
Se aprovado, o interessado recebe o braçal e é integrado definitivamente à Rota. Caso contrário, sai do pelotão, volta para a guarda e espera por transferência para outro batalhão.
Perfil da tropa
Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e tenente-coronel da reserva da PM, Alan Fernandes diz que a doutrina da Rota tem a ver com uma série de questões operacionais que privilegiam a segurança e a ostensividade maior do patrulhamento. Por exemplo: para onde cada um da viatura deve olhar, o que cada indivíduo deverá fazer em caso de tiroteio ou preservação da ocorrência. “Coisas de polícia, que se valoriza muito por lá”, diz. “O cara tem que ter isso incrustado, não pode achar que é bobagem, senão não fica”, afirma.
Sobre o estágio, diz que não é nada parecido com o mostrado no filme “Tropa de Elite”, que levou para o cinema o dia a dia do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM do Rio de Janeiro. “Eles dão ‘ralos’ também, mas não como no Bope, aquela coisa de Capitão Nascimento, de levar o cara até o limite físico”, diz. “Não tem nada a ver.”
“Quem quer entrar na Rota é uma pessoa que está disposta a ficar nesse enfrentamento. A maioria dos policiais não quer isso, quer só atender a uma ocorrência, prender um ladrão”, diz Fernandes. “O policial de Rota tem que ter mais engajamento, mais disposição para cumprir funções e fazer abordagens, esse tipo de patrulhamento mais pesado”, completa.
A carga horária de um “rotariano”, como é conhecido o policial do 1º Batalhão de Choque, costuma ser mais extenuante que a de outros policiais. O Metrópoles apurou que, antes de começar o serviço diário, são duas horas para orientações de cunho jurídico, educacional e preparação física. Como comparação, um policial de batalhão de área tem, em média, uma semana ao ano de instrução, em modelo híbrido (presencial e online).
O armamento também é diferenciado. Em uma rádio-patrulha, por exemplo, o policial conta com pistola .40 para realizar o policiamento. Já o integrante da Rota, pelas características do tipo de operação em que deverá se envolver, tem à disposição fuzis 556, 762, pistolas 9mm e espingardas calibre 12.
Atento, discreto, fala pouco e tem gestual mais contido. Segundo Fernandes, esse é o perfil característico de policiais da Rota. Fazer parte dessa tropa é algo que vai além do período em que servem na Tiradentes. “Eles constroem uma identidade em cima disso para a vida toda”, diz.
O salário de um PM da Rota não difere daquele que é pago a outro de mesma patente e tempo de serviço em batalhões de área, por exemplo. Mas pode ter benefícios “extra-oficiais”. “Ganham o mesmo que os demais, mas, como são mais bem vistos, a oferta de segurança privada é mais polpuda. Atraem bicos mais rentáveis”, diz Fernandes. Empresários e celebridades costumam contratar agentes da Rota como guarda-costas. O bico é ilegal.
Tortura e morte
A tropa de elite da PM paulista se envolveu em inúmeras ações extremamente violentas ao longo dos anos.
Telhada diz que, por ser uma tropa deslocada para ocorrências graves, com indivíduos fortemente armados, é maior a possibilidade de haver confronto. “É o que sempre falo: o cara não quer morrer, ele que se entregue, que não saia armado”, afirma o deputado.
Para Fernandes, ainda há resquícios da época em que a Rota foi fundada, durante a ditadura militar. “Eles se digladiam muito por lá, têm muitas brigas históricas, mas ainda há resquícios que vem e vão, de novas gerações que se alimentam disso, de práticas arbitrárias, violentas, de tortura e morte”, afirma.
Segundo ele, alguns comandos se colocaram contra essas práticas violentas e outros foram declaradamente favoráveis. “É um câncer que, muitas vezes, diversos comandos tentaram extirpar. Isso ainda permanece no submundo, de cultura de cantina [de “canteen culture”, expressão em inglês sobre comportamentos que se perpetuam e contam com conivência de quem está dentro]”, afirma
Para o especialista, ao mesmo tempo que PMs da Rota têm um padrão de policiamento muito acima da média do ponto de vista operacional, também podem trazer consigo mais artimanhas para se livrar de situações onde seriam flagrados cometendo possíveis ilegalidades.
“É difícil. A Rota tem policiais mais hábeis em fazer polícia. Têm mais traquejo. Sabem ‘dar chapéu’ de formas melhores”, diz.
Fernandes diz que o uso de câmeras corporais pelos PMs e a análise de governança podem fazer a diferença no controle da tropa.
Um dos oficiais ouvidos em anonimato pela reportagem, com larga experiência, diz que como a Rota só trabalha em situações de extremo risco, é necessário atenção constante para que os PMs atuem dentro da legalidade.
“Na hora do frigir dos ovos, o policial fica sozinho. Ninguém vai pagar o advogado dele. ‘Não se emocione, não se empolgue, porque ninguém vai ficar ao seu lado’, é o que digo. É preciso trabalhar a maturidade do policial. Independentemente de mídia sensacionalista, que diz que bandido bom é bandido morto”, afirma.