Reconhecimento facial: “Erro há para qualquer cor”, diz vice paulista
Vice de Tarcísio, Felício Ramuth diz que o governo não promete acabar com a Cracolândia em 4 anos, mas sim reduzir os danos na área
atualizado
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São Paulo – Designado para coordenar projeto integrado entre o governo estadual e a Prefeitura da capital na região da Cracolândia, o vice-governador Felício Ramuth (PSD) compara a instalação de câmeras de reconhecimento facial na área frequentada pelos usuários de drogas aos equipamentos corporais acoplados nas fardas dos policiais.
A primeira medida é criticada pelo Ministério Público paulista (MPSP), pela possibilidade de fomentar discriminação racial e violações de direitos humanos, enquanto a segunda tem sido elogiada por ajudar na redução da letalidade policial.
“O Ministério Público é muito a favor das câmeras. Eles são a favor das câmeras no peito de policiais, por que não são a favor de câmera em poste? Elas vão servir, inclusive, para acompanhar operações policiais”, afirma Ramuth, que recebeu a reportagem do Metrópoles no Palácio dos Bandeirantes, na tarde da última terça-feira (31/1).
Uma licitação aberta pela prefeitura para comprar câmeras com a tecnologia de reconhecimento facial já foi suspensa pelo Tribunal de Contas do Município (TCM) e virou alvo de inquérito do MPSP por causa dos riscos de violação aos diretos à intimidade e à privacidade e uma possível discriminação racial.
Ex-prefeito de São José dos Campos, no interior paulista, o vice de Tarcísio de Freitas (Republicanos) rebate as suspeitas. Diz que a tecnologia já foi adotada com êxito na sua cidade e rechaça qualquer possibilidade de o modelo de reconhecimento facial fomentar conduta racista por parte da polícia.
“Erros podem acontecer por todos os lados, para qualquer tipo de cor. Por isso que existe a abordagem. A câmera não vai lá, detecta alguma coisa e tudo é feito automaticamente. Por isso que há pessoas envolvidas nisso, profissionais habilitados para isso”, frisa Ramuth.
O vice-governador também fez críticas e elogios a ações adotadas na Cracolândia por gestões passadas, como o programa Braços Abertos, lançado quando Fernando Haddad (PT) era o titular da Prefeitura de São Paulo (2013-2016), e as operações realizadas pelos governos do PSDB, partido que comandou o estado por 28 anos consecutivos e ao qual ele pertenceu até o ano passado.
Leia a entrevista concedida ao Metrópoles:
Recentemente, a Prefeitura de São Paulo suspendeu a licitação do programa Smart Sampa, que prevê a instalação de 20 mil câmeras com reconhecimento facial na cidade, e o Ministério Público abriu inquérito para investigar o funcionamento da tecnologia. O sr. não se preocupa com a possibilidade de o plano do governo de instalar 500 câmeras com a mesma tecnologia na Cracolândia vire alvo do MP?
O Ministério Público é muito a favor das câmeras. Eles são a favor das câmeras no peito de policiais, por que não são a favor de câmera em poste? Elas vão servir, inclusive, para acompanhar operações policiais. Acho que vai ser muito bacana. Ao contrário, não vejo qualquer tipo de óbice do MP por conta disso. Qual é a diferença de ter uma câmera no peito de um policial, em uma operação dentro da Cracolândia, e estar dentro de um poste acompanhando a operação? Será bom para as pessoas, bom para o cidadão e bom para os policiais, que vão ter sua queda na letalidade, tanto da ação policial quanto da própria preservação da polícia.
A crítica deles envolve o sistema de reconhecimento facial…
Isso já é aplicado. Para a segurança, já tem legislação. O Ministério Público pode fazer o que ele quiser, não existe nada contra reconhecimento facial para a segurança pública. Vai ser utilizado pelo estado para as forças de segurança.
Mesmo nos casos que alegam possibilidade de discriminação racial?
Não, não existe isso. Com câmera?
Sim, de ocorrer algum erro no reconhecimento facial por meio da tecnologia.
Erros podem acontecer por todos os lados, para qualquer tipo de cor. Por isso que existe a abordagem. A câmera não vai lá, detecta alguma coisa e tudo é feito automaticamente. Por isso que há pessoas envolvidas nisso, profissionais habilitados para isso. Existe, por exemplo, a detecção se a pessoa é procurada pela polícia. Ela vai ser abordada, vão pedir a identidade dela e vão checar se ela é ou não procurada pela polícia. Ninguém vai lá fazer qualquer tipo de ação que não garanta os direitos humanos nessa abordagem, assim como está sendo feito hoje. Tem que se respeitar toda a questão de direitos humanos. Repito: ninguém está falando de algo que não existe. Podem ir a São José dos Campos e ver como funciona. Cada dia lá a gente prende pelo menos umas três ou quatro pessoas por conta do reconhecimento facial.
O governo já procurou fornecedores para as câmeras de reconhecimento facial?
Ainda não tem fornecedor.
Vários governos já prometeram acabar com a Cracolândia. O governo Tarcísio também promete?
Não, de forma alguma. A gente promete ter trabalho duro para poder fazer com que o centro deixe de ser terra de ninguém. Hoje, o centro é terra de ninguém. Pode ter certeza que nós vamos atuar em conjunto para que o centro possa ser devolvido à população de São Paulo e de todo o Brasil. Com muita resiliência, sem bala de prata, sem solução mágica. É diferente de prometer. Muita gente já anunciou que terminou a Cracolândia. É muito pior do que prometer. O que o governo Tarcísio promete é trabalho duro em todas as áreas multidisciplinares para poder acolher as pessoas e, ao mesmo tempo, devolver o centro para os comerciantes, para a população. Estou convicto de que é possível fazer muito melhor do que foi feito até hoje.
É possível acabar com a Cracolândia em 4 anos?
Hoje, eu não reconheço uma Cracolândia. Eu reconheço cenas abertas de uso. Hoje, a gente tem de seis a oito cenas abertas de uso, umas com pouco mais gente, outras com menos. A situação hoje é bem diferente da que a gente via no passado. Isso não significa que o impacto não seja negativo para a população da região central e para aqueles que ali estão, que hoje têm pouco acesso aos serviços públicos. Ainda que queiram ser internados, não conseguem um caminho para isso. Eu não tenho dúvida de que a gente vai conseguir melhorar os acolhimentos, melhorar o convencimento, vai conseguir convencer muito mais pessoas a buscar o tratamento. Não existe comprometimento de data, dia ou hora com esse objetivo. Mas o trabalho do dia a dia vai mostrar que é possível fazer muito melhor. Não tenho dúvida de que o centro vai deixar de ser terra de ninguém.
O governador disse que a questão da internação compulsória só seria válida “em último caso”. O que isso significa?
Internação compulsória você não precisa perguntar para mim, é só perguntar para a Justiça. Tem regra para ser seguida.
O prefeito Ricardo Nunes defendeu a internação compulsória para usuários de drogas com mais de cinco anos de consumo.
Acho que isso foi antes do programa. Então, é uma situação completamente diferente.
Houve algum tipo de trabalho para convencer o prefeito a respeito da internação compulsória?
Sim. O plano é conjunto. E nenhum plano funcionou tendo como linha mestra a internação compulsória. Isso não existe. Ela é prevista para um caso de exceção, não de regra. Existe uma pesquisa da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) que diz que 90% das pessoas que estão na Cracolândia querem sair de lá. Olha só como a gente tem um universo para trabalhar. Então, vamos trabalhar o convencimento. Houve um trabalho de convencimento para com o prefeito e algumas coisas a gente teve que ceder para um lado, outras do outro lado.
E a Justiça Terapêutica?
É uma abordagem para cumprir uma determinação do Conselho Nacional de Justiça. Tem ali cada tipo de caso, quais seriam os passos da Justiça Terapêutica em situações penais de menor potencial ofensivo. Vou explicar em dois casos. O primeiro é de menor potencial ofensivo. Se você é (réu) primário, está consumindo droga na cena aberta e é levado para a delegacia, você vai ser fichado. Mas você pode optar por não ter a ficha suja desde que aceite algum tipo de tratamento. Não significa que você vai ser internado, pode ser participar de grupo de ajuda mútua, algo como os Narcóticos Anônimos. Cada caso é um caso. Você teria que comprovar a frequência e isso funcionaria como uma medida alternativa. Em troca disso, (o dependente químico) não é fichado.
Mas alguns setores criticam esse tipo de atuação, tacham como chantagem.
Ninguém vai preso por esse crime. Você não vai preso, pode optar por ficar com a ficha suja ou frequentar um grupo de ajuda. Se quiser ter a ficha suja, não tem problema nenhum. Outro exemplo de aplicação da Justiça Terapêutica: você é um presidiário que está em benefício de pena, no regime semiaberto, e tem que seguir várias regras. Não pode fumar, não pode consumir droga em cenas abertas de uso, tem horários para cumprir. Se você for pego por um policial fora do horário ou consumindo droga, mais para frente, um juiz em uma audiência de custódia vai determinar que você terá que voltar para a cadeia. Mas, com a Justiça Terapêutica, uma opção é oferecer um tratamento em regime fechado para o usuário de droga – não o traficante –, já que ele iria retornar para o regime fechado de qualquer jeito.
O que é o tratamento em regime fechado?
É um local igual a um presídio, onde a pessoa tem o benefício de ter um tratamento. É melhor você tentar se tratar do seu vício, que inclusive te levaria de volta para a cadeia. O nosso argumento é que a gente queria que ele (o usuário) não fosse para um tratamento fechado. Queríamos oferecer a ele o tratamento normal, mas o Tribunal de Justiça diz que não pode, que tem que ser em regime fechado. A primeira colocação de algumas análises do Ministério Público é que não poderíamos atenuar nesse caso específico. A gente queria dar a opção de não voltar para o regime fechado para ele poder ter um tratamento em uma clínica, ou no Caps (Centros de Atenção Psicossocial), ou no grupo de narcóticos. Mas nos disseram que isso, hoje, ninguém ia conseguir fazer. Há abordagens de Justiça Terapêutica aqui em São Paulo atualmente, mas isso não é institucionalizado. A gente quer conversar com o Tribunal de Justiça, a Promotoria, e chegar ao estado da arte da Justiça Terapêutica.
O que é esse estado da arte?
É como a Casa da Mulher Brasileira. Lá funciona tudo no mesmo lugar: delegacia, promotoria, audiência de custódia. Nesse lugar, que não existe ainda, mas é um sonho nosso, o compromisso é implementar a Justiça Terapêutica em um espaço físico, onde o usuário teria psicólogo e conseguiria todo o apoio. A própria porta de entrada seria a polícia, e as audiências de custódia seriam específicas para os casos que não são de tráfico, mas sim de usuários. E quem deu esse exemplo da Casa da Mulher Brasileira foi o próprio presidente do Tribunal de Justiça. Isso mostra que ele entendeu bem o conceito.
A atual gestão fala com ceticismo sobre o programa Braços Abertos, da redução de danos, implementado na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad…
Na nossa análise, o programa Braços Abertos pode levar a um risco grande de que o beneficiário receba o recurso e acabe investindo no consumo da própria droga. A gente acha que isso não é bom para garantir a ele independência e autonomia. Embora nossa defesa seja de que o resultado de todas as ações devem levar os usuários a atingir estabilidade e autonomia, a gente acredita que, se ele usar isso [o recurso] para consumir drogas, ele estará alimentando o crime organizado. É por isso que o aluguel social não é pago para o usuário, por exemplo, mas sim para o dono do imóvel.
Mas o senhor vê também acertos no Braços Abertos?
Sem dúvida. No programa Braços Abertos, existia uma abordagem mais qualificada do que nós temos hoje. Nada já feito foi de todo ruim, e com certeza não foi de todo bom, ou então teria resolvido o problema. Quadruplicou o número de pessoas que estavam ali nas cenas abertas, o resultado não foi positivo, mas com certeza no meio de tudo há algumas experiências exitosas.