Projeto “desenterra” inquéritos para identificar mortos desconhecidos
Iniciativa pioneira da Polícia Civil de SP tem reaberto investigações e esgotado recursos em busca de respostas a famílias de desaparecidos
atualizado
Compartilhar notícia
São Paulo — Um projeto pioneiro desenvolvido pela Polícia Civil no interior de São Paulo está reabrindo investigações arquivadas neste século sobre a morte de pessoas enterradas como desconhecidas. O objetivo é utilizar ferramentas e tecnologias indisponíveis no passado para tentar identificar esses mortos — e, assim, pôr fim à angústia de famílias que, há anos, buscam informações sobre parentes desaparecidos.
O projeto Humanidade 21 — referência ao período em que os casos estão sendo reabertos, a partir do ano 2000 — teve início em dezembro, pelas mãos do delegado Everson Contelli, que comandava a unidade de inteligência em Presidente Prudente e atualmente responde pela Seccional de Fernandópolis. O trabalho tem a parceria da Universidade Brasil.
Estudioso e entusiasta do tema, Contelli finaliza uma pesquisa acadêmica sobre a lacuna jurídica em que se encontram os mortos não identificados. “No Brasil, fundações, empresas e mesmo entes sem personalidade jurídica como o espólio e a massa falida têm proteção, representação e, em alguns casos, até capacidade jurídica e processual”, diz.
“No entanto, a figura do morto desconhecido não tem regime algum dada a sua condição, restando a última barreira de proteção à investigação criminal.” Os desdobramentos e resultados da pesquisa foram fundamentais para a implementação do programa na Polícia Civil.
Quatro etapas
O processo de identificação do projeto Humanidade 21 consiste em quatro etapas, descritas nas portarias que instituíram o programa. “O primeiro passo é fazer um levantamento dos óbitos de pessoas desconhecidas na cidade a partir do período definido”, explica Contelli. Em Fernandópolis, por exemplo, havia 17 casos no início dos trabalhos e, em Presidente Prudente, 83.
“Na segunda fase, os inquéritos sobre as mortes são reabertos e são feitos trabalhos manuais e tecnológicos em busca de evidências que possam ligar o morto a uma identidade civil ou criminal”, diz o delegado.
Para ajudar no processo, os policiais recorrem a ferramentas de inteligência que ainda não existiam na época da morte, como bancos de dados, inteligência artificial, softwares forenses e exames de DNA, para fazer análises e comparações. “Esse etapa pode levar semanas ou meses, até que se chegue a uma identidade”, afirma o policial.
Uma vez feita a identificação, chega-se à fase seguinte, que é a de comunicação à família e reconhecimento. É um momento sensível, segundo Contelli, uma vez que muitas pessoas que esperavam ter notícias sobre o paradeiro de um ente querido são informadas sobre a morte.
“Atestado de dignidade”
Por fim, a etapa 4 culmina com a atribuição de identidade. “A partir daí, os bancos de dados nacionais são atualizados, o Cartório de Registro Civil é notificado e uma nova certidão de óbito é emitida”, diz Contelli. “É como um atestado de dignidade à família e à memória da pessoa enterrada.”
Resultado direto do trabalho policial, a primeira certidão de óbito foi emitida em maio em Meridiano, região de Fernandópolis. Trata-se de um homem que foi enterrado na cidade há cerca de 10 anos e não havia sido reclamado por nenhum familiar.
Os investigadores conseguiram localizar a irmã do homem, que vive em Piracicaba, também no interior. Ela nunca soube o que tinha acontecido com o irmão e ainda tinha esperanças de encontrá-lo vivo. “Para ela foi, de certa forma, um alívio poder encerrar esse ciclo”, conta o delegado.
Outros dois mortos foram identificados na região de Presidente Prudente. “É um feito importante para poucos meses de trabalho e mostra um caminho para adoção da metodologia em outras cidades e até para todo o país”, afirma o seccional de Fernandópolis.
Morto em Santo Expedito
Em um caso que acaba de ser desvendado, foi levantada a identidade de um idoso que bateu a cabeça quando se dirigia a uma cidade religiosa, Santo Expedito, destino de peregrinos de todo o Brasil, em fevereiro de 2018. Ele foi hospitalizado, mas morreu três dias depois.
Como estava longe de sua cidade, ninguém reconheceu o corpo na época e ele foi enterrado como indigente. A Polícia Civil está, neste momento, finalizando o procedimento de comunicação à família.
Ainda sem conclusão, o caso de um jovem que morreu atropelado em abril de 2016 na região de Fernandópolis intriga os policiais. “Já esgotamos as pesquisas nos institutos de identificação de todos os Estados do Brasil e do Distrito Federal e nada encontramos. Por isso nossa meta é levar a metodologia para outros países”, afirma o delegado Contelli.
A proposta de ampliação do projeto, atualmente em andamento nas regiões de São José do Rio Preto e Presidente Prudente, já está em análise na Delegacia Geral de Polícia.
Respostas às famílias
Procurada pelo Metrópoles para comentar a iniciativa, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) disse, em nota, que o projeto Humanidade 21 foi criado a partir de duas portarias normativas da Polícia Civil, sendo uma da Unidade de Inteligência de Presidente Prudente (Deinter 8), e outra da Delegacia Seccional de Fernandópolis, região de São José do Rio Preto (Deinter 5).
O projeto em andamento, segundo a SSP, já identificou três corpos e utiliza novas técnicas de investigação criminal, inteligência artificial e análises de DNA para resolver casos arquivados desde 2000.
O objetivo é “promover a memória e a dignidade das vítimas, oferecendo respostas às famílias”, diz a nota. Atualmente, a iniciativa está na segunda fase e é avaliada na 21ª edição do Prêmio Innovare.