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O carcereiro trans que desafiou o sistema em SP

Jill Moraes conseguiu a retificação de nome e gênero em meio ao processo de aposentadoria, após atuar por 32 anos como agente penitenciário

atualizado

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Arquivo pessoal
O carcereiro trans que desafiou o sistema em SP
1 de 1 O carcereiro trans que desafiou o sistema em SP - Foto: Arquivo pessoal

São Paulo – “Quando eu cheguei no sistema penitenciário eu só sabia amar”. É assim que Jill Moraes, de 59 anos, descreve o momento em que ingressou na carreira de agente penitenciário, em 1990, poucos anos após deixar uma comunidade hippie no litoral norte do estado de São Paulo, onde vivia desde os 14 anos de idade.

Mas a história de Jill não é simplesmente a história de um hippie que virou carcereiro. É a história do primeiro agente de segurança prisional transgênero a se aposentar no estado de São Paulo.

Mais que isso: ele conseguiu a retificação do nome e gênero no documento em meio ao processo de aposentaria. Ou seja, trabalhou por 32 anos em presídios do estado registrado como mulher, mas se aposentou como homem.

Isso foi suficiente para que o trâmite, que costuma levar de dois a três meses, durasse sete meses para ser concluído.

“Eles alegaram ‘dúvidas jurídicas relevantes’. Porque não havia jurisprudência. Ficou cinco meses parados, até tive que voltar a trabalhar. Depois da repercussão por causa de uma reportagem, a aposentadoria saiu no dia 1º de abril de 2020”.

Espirituoso, Jill ainda faz piada com o fato de a decisão ter saído justamente no Dia da Mentira. “O estado é perverso”,  brinca.

O policial penal aponsentado conta que não conseguiu arrumar um advogado que topasse a empreitada. O caso acabou nas mãos do advogado Sérgio Moura, do Sifuspesp, sindicato que representa a categoria e do qual Jill foi diretor. “Ele ficou quatro dias fechado em casa estudando o caso”, conta.

O carcereiro trans que desafiou o sistema em SP
O policial penal aposentado Jill Moraes

Preconceito e perseguições

Sindicalista e com forte militância política, Jill conta que sofreu perseguições dentro do sistema e que foi transferido de unidade inúmeras vezes. “Eu conheço 11 presídios de São Paulo, por conta dessa perseguição”, afirma.

“Eu conseguia mobilizar e parar a cadeia, para eles não era interessante. Então, quando eu chegava a uma unidade, eles não queriam saber quem eu era, se eu era um bom funcionário, se eu tinha envolvimento com presa. Aí eles faziam Casa de Caboclo”.

Ele explica que Casa de Caboclo é um termo usado no meio prisional para se referir a uma espécie de armadilha. Presas que repassavam informações aos guardas e diretores sobre rebeliões ou presença de drogas dentro da unidade, chamadas de “passarinhos”, eram designadas para assediá-lo, quando Jill – à época, Gilda – entrava na cela para fazer a contagem.

“Todo mundo sabia que eu era lésbica, sempre fui assumido. Eu batia contagem, entrava dentro da cela às 22h, então a presa estava de pijama, ela podia falar que o “seu Gil” (como era chamado pelas presas) me desrespeitou, isso dava um BO grande. Mas eu me aposentei com meu prontuário imaculado, nunca tive problemas”.

O aposentado conta que, atualmente, os diretores de presídio são proibidos de realizar transferências sem justificativa. Em sua época como servidor, no entanto, ele afirma que não conseguia recorrer das decisões por não haver lei que amparasse.

“Tem que inaugurar uma cadeia lá em Franco da Rocha, no regime fechado diferenciado, manda o Jill. Tem que mandar 14 mulheres para lá para inaugurar a maternidade, manda o Jill. Pode ver que eu inaugurei tudo, está no meu prontuário. Eram assim as transferências”, relata.

Além da questão política, ele também credita aos seu visual e sexualidade as perseguições.

“Eu já tinha uma androginia, era bem magro, um corpo bem masculino, porque quase não tinha seio. Tinha cabelo comprido, mas sem pentear porque eu era ‘hippongo’. Ia trabalhar de chinelo de couro. Então, sofri preconceito por conta do meu visual, por conta da minha identidade de gênero e da minha militância política”, conta.

O carcereiro trans que desafiou o sistema em SP
Jill Moraes em 2018, para reportagem da Revista Veja

Transição de gênero

Embora tenha passado toda a vida e carreira sendo chamado de “Gil”, o policial penal passou, de fato, a fazer a transição de gênero em 2014, aos 51 anos.

Antes de começar a transição, ele afirma que se considerava lésbica. “Eu não me travestia de homem, eu simplesmente tinha o corpo masculino. Eu não gostava do meu nome Gilda, então todo mundo me chamava de Gil”.

Ele conta, no entanto, que sempre teve duas vontades: ter barba e não ter seios. “Eu achava muito bonito a questão de ter barba, de não ter peito. Por isso, decidi tomar hormônio”..

“Comecei a tomar por conta própria um hormônio que não é apropriado. Tomei oito caixas durante seis meses. Em 2015, o (Fernando) Haddad (então prefeito de São Paulo) começou um projeto na UBS Santa Cecília, aí fui chamado para fazer porque uma amiga trabalhava lá. Éramos nove, hoje tem mais de 1500 pessoas fazendo”, afirma.

Segunda conta, o hormônio, oferecido de graça pela unidade, custava no mercado cerca de R$ 900 a caixa. Além do remédio, ele também passou a fazer tratamento com endócrinologista, com psicóloga e com ginecologista.

Em 2017, Jill realizou a masectomia, procedimento de retirada das mamas. “Fiz no Hosptial Estadual do Servidor Pública. Foi a segunda que eles fizeram”.

O ex-agente penitenciário afirma que vai fazer a última consulta no início do próximo mês e que, no dia 15 de fevereiro, vai começar o processo de redesignação de voz.

Carandiru e rebeliões

Jill Moraes ingressou como policial penal na ala feminina do presídio do Carandiru, dois anos antes do massacre que deixou 111 presos mortos em 1992. Lá, ele criou relações com as sequestradoras do empresário Abílio Diniz, no período em que tinha a imcubência de vigiar as presas que ficavam estudando na biblioteca do presídio.

“Li meu primeiro livro no Carandiru: A República, do Platão. As próprias meninas, as sequestradoras do Abilio Diniz, umas presas inteligentes, começaram a me incentivar a ler, eu ficava tirando dúvidas com elas”.

Jill conta que, nos 32 anos em que trabalhou dentro de cadeias, vivenciou rebeliões. Nessas ocasiões, por ficar mais nas alas femininas, ou no setor de visita de mulheres e mães de presos, ele normalmente não ficava no “olho do furacão” dos  conflitos.

Isso, no entanto, não impede que relembe com detalhes o momento mais “punk” de sua vida, em suas palavras: o massacre do Carandiru.

“Eu estava a uma parede do massacre, na ala feminina. As mulheres que eu estava cuidando tinham filhos, marido e pais lá dentro. Eu tinha que acalmar as meninas, elas estavam enlouquecidas. Eles contavam só as cabeças, porque não dava para contar membros. Passei isso lá dentro”, lembra.

As memórias de Jill sobre as mais de três décadas dentro de prisões não são feitas apenas de momentos tensos e violentos. Ele lembra com carinho de quando conviveu, também na ala feminina do Carandiru, com Diolinda, líder sindicalista e mulher de Zé Rainha, do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST).

“Tinha um acampamento no pessoal do MST lá fora. Eu pegava os bilhetes dele e levava para ela, fazia essa ponte. Ela ficou 45 dias no Carandiru. Depois, me levou para o Pontal do Paranapanema (região de fazendas onde Diolinda e Zé Rainha atuavam), fui pescar com eles. Tudo isso consegui dentro da prisão. Essas histórias são lindas”.

Hippie, sindicalista, polícia penal e… corredor

As várias facetas de Jill ainda guardam outro detalhe: o carcereiro aponsentado foi por muito tempo um corredor de montanhas de alta performance.

Palmeirense, ele chegou a competir com uniformes do Corinthians. “Eu só era patrocinado pelo ‘curintia’. Porque eles participam dos circuitos de montanhas. Se meu time investisse nesse tipo de corrida, eu correria pelo Verdão”.

Jill explica que, depois da transição de gênero, não pode mais competir. Ele ainda pratica corrida no asfalto e em parques, mas já faz planos para voltar às competições. “Espero poder voltar a treinar e retornar aos circuitos profissionais das corridas de montanhas”.

Projeto social e planos para o futuro

Hoje, Jill ainda vive em São Paulo, mas por pouco tempo. Seu plano é, no final do ano, se mudar para uma casa de praia, onde pretende viver com seus quatro cachorros e dois gatos.

Enquanto isso, ele ajuda um sobrinho que lidera um projeto social voltado à assistência a moradores de rua no centro de São Paulo.

Jill divide o tempo livre de aposentado entre montar kits de higiene e de roupas para a população vulnerável e meditar. Além disso, ele dedica as manhãs para limpar as ruas do entorno onde mora.

“Eu acordo 4h30 da manhã, varro os quarteirões da minha casa, do meu bairro, as pessoas acham estranho, elas não estão acostumadas a ver um velhinho varrendo a calçada. Elas acham engraçado, mas acham bom”.

 

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